DONA BOCETILDES, COM TODO PRAZER!

(Reedição)

De hoje não passa – jurei para mim, mesmo.

Era uma noite fria, mas eu tinha que ir lá. Embora eu seja uma pessoa bastante tímida, não deixei de procurá-la. Fui sozinho até à sua casa e pela primeira vez. Ali chegando, acionei a campainha e uma senhora meio idosa veio me atender. Muito acanhado – não podia ser diferente – perguntei:

- Dona Bocetildes, está?

- Sim, pois não? – respondeu-me ela imediatamente.

- Ah, é a senhora?!

- Por que não? – Indagou-me ela. – Conhece outra Bocetildes?

- N-Não, senhora. Achei simplesmente que podia ser outra pessoa.

- Ah, já sei: pensava que eu era mais nova, não é? Não tem problema. As pessoas que ainda não me conhecem têm essa expectativa: sempre esperam uma Bocetildes jovem. Aliás, é o que sempre querem, também.

De repente, apontando em direção à minha calça, ela exclamou:

- Eita! Mas, o que é isso?! Não precisava você já vir armado desse jeito!

Não entendi até que olhando vi que estava volumosa a região da minha calça próxima da braguilha. Nessa hora, devo ter ficado vermelho de vergonha. Aí retirei de um dos meus bolsos da frente uma lanterna de pilhas e expliquei meio constrangido:

- Olhe, é apenas este objeto no meu bolso. A noite, como a senhora vê, está muito escura, e por aqui sabemos que a iluminação é bastante precária, não é verdade?

- Oh! – exclamou Doma Bocetildes – era só a lanterna... Que pena! – E caiu na gargalhada. Depois completou – Não ligue, não meu filho, esta velha é doida, mesma; gosta muito de brincar. Aliás, como você pode ver, até o meu nome é uma brincadeira.

- Então, este não é o nome verdadeiro da senhora? – meio sem jeito quis eu saber.

Mais uma vez, ela caiu na gargalhada, dizendo-me:

- E você acha que um pai seria capaz de colocar um nome desses em sua filha?

- Sei lá! Já vi tanto nome esquisito. Mas, afinal, por que a senhora adotou este apelido?

- Ah, ficou curioso, hein? – disse-me sorrindo – mas vamos entrar primeiro que aqui está um frio danado! Lá dentro eu lhe explico tudo.

E assim entrei na casa de D. Bocetildes. Uma casa modesta, porém muito bem arrumada e aconchegante. Da cozinha vinha um gostoso cheiro de bacalhau. Dona Bocetildes me pediu para sentar e então iniciou com a sua explicação:

- O meu nome mesmo era Jorgina, então aí há uns dez anos atrás, resolvi mudar.

- Jorgina? Mas um nome bonito desse e a Sra. muda para um apelido excêntrico!

- Excêntrico?!... Já tem quem acha vulgar.

- Perdão: mas é tudo isso.

- Quer dizer que você não gostou? Pois eu não gosto é de Jorgina. Detesto! Jorgina é aquela advogada canalha, ladrona que roubou o dinheiro do INSS. Fiquei indignada com o que ela fez. Foi aí que tomei pavor ao meu nome. Eu sou brincalhona, mas sou uma mulher de caráter. E como este é o país da impunidade para os da classe da burguesia, eu jurei para todo mundo que, se essa vigarista fosse um dia parar na cadeia, eu mudaria o meu nome para Bocetildes. Como sou uma mulher de palavra, assim que soube que a crápula foi finalmente presa, fiquei feliz e passei a me chamar Bocetildes, com todo respeito.

- Não podia ter escolhido um outro nome? – perguntei.

- Lá vem você! Parece que não gosta? – retrucou – Olhe, meu filho: considero este nome mais decente que o outro. Isso é que importa.

Enquanto ela falava, o cheiro de bacalhau me enchia a boca d’água. Por fim, me perguntou:

- Então, meu filho, o que lhe traz aqui? Qual é o seu problema?

- Uma enxaqueca, D. Bocetildes. Uma enxaqueca violenta que só falta me matar.

- Pensei que era outra coisa. E já foi ao médico?

- Várias vezes.

- E o que ele diz?

- Que não tenho nada. E só me passa analgésicos. Mas eu não quero viver de tomar analgésico. Por isso vim procurar a senhora.

- Fez muito bem.

- Devo dizer também que já apelei pra centro espírita, candomblé, Igreja Universal, mas nada adiantou.

- E quem me indicou, meu filho?

- Ah, várias pessoas. E isso já há bastante tempo.

- E só agora você resolveu vir, por quê?

- Confesso que demorei de acreditar, D. Bocetildes. Achava que poderia ser uma pilhéria do povo; que uma pessoa não poderia se chamar assim. Ainda mais quando me diziam que a Sra. só atende se for tratada com este nome.

- Ah, isso é verdade, informaram-lhe muito bem. Se eu lhe disser uma coisa, você não vai nem acreditar! Deixei de atender ao presidente Lula só por causa disso.

- Está brincando! O presidente, mesmo? E ele conhece a senhora?

- Claro que não. Mas é que tenho um certo conceito entre os políticos. Os daqui da Bahia, quase todos me conhecem. Já curei muitos deles. A “A Tarde”, uma vez, até publicou em manchete: “Jorgina de Catu cura neto de ACM”, não viu?

- Ah, lembro disso... Jorgina de Catu, a benzedeira! Então era a senhora?

- Claro! Fiquei muito famosa. Por isso que, quando o presidente Lula esteve aqui na Bahia, sofrendo ainda daquela bursite, lembraram de mim. Então, algumas autoridades vieram me procurar. Expliquei que só atenderia ao presidente se fosse tratada pelo meu nome atual, Bocetildes, o que eles não concordaram. Resultado: o Lula ficou sem a minha reza.

- Parece também que a Sra. não gosta do presidente, não é?

- Quem disse? Até que gosto muito, agora preferia Dercy Gonçalves no lugar dele. Aí o país iria se moralizar. Mulher retada! Sou fã dela. É pena que ela não se candidata; o meu voto seria dela.

- Acontece que Dercy não é política e já vai fazer cem anos de idade.

- Ainda assim, a prefiro.

- Mudando de assunto: a Sra. ainda atende a muita gente famosa?

- Claro! Sabe quem saiu daqui há pouco? O padre Pinto. Estava com uma artrite, coitado!

- Mas, a senhora deve ter perdido muitos clientes com esta mudança de identidade, não foi?

- E eu ligo? Foi até bom que diminuiu o meu trabalho. Eu vivia estressada. Era muita gente para eu atender. Olhe, eu só tenho um problema com este novo nome: é as pessoas acharem que eu seja pretensiosa. Não gosto de ser confundida com uma pessoa pernóstica. Sei muito bem que este nome não combina comigo. Não sou “testuda”, pelo contrário: sou miúda em tudo. Não sou nenhuma Vera Lúcia.

- Vera Lúcia?! Quem é?

- Ahhh, ficou interessado, não foi? Você é acanhadozinho, mas não é besta, não! Olhe, Vera, meu filho, é uma amiga (e diga-se de passagem, uma amiga gente fina) que mora no bairro de Brotas. Uma coroa, meu filho, enxuta, com tudo em cima, nos trinques. Aquela sim, tem uma “testa”! Quando veste uma calça justa acentuando o capô do seu Fusca, ela pára o trânsito. Nela o nome cairia feito uma luva. Mas, vamos ao que interessa: sua enxaqueca. Quero saber com que freqüência ela acontece.

- Quase todos os dias. E logo que passa o efeito dos analgésicos, ela costuma voltar.

- Mas agora – disse-me ela sorrindo – você vai ficar bom. Encosta a cabecinha aqui na Bocetildes que ela já vai resolver isso.

Dona Bocetildes começou a orar, colocando uma garrafa de água sobre a minha cabeça. Não demorou muito quando a água começou a entrar em ebulição. Parecia até que estava fervendo. Assim deve ter ficado uns três ou quatro minutos e depois se normalizou. Disse-me ela:

- Pronto! Está curado da sua enxaqueca, meu filho. Não vai mais sentir nem uma dorzinha de cabeça. Minha cura é garantida, não já lhe disseram?

_ Graças a Deus! Respondi e, em seguida, perguntei – Quanto foi o trabalho da senhora?

- Não costumo cobrar, a não ser de políticos. Mas aceito o que a pessoa quiser me dar. Até um beijo, eu fico satisfeita.

Tirei 50 reais e entreguei para ela, que demonstrou ficar agradecida. E disse-me:

- Quando precisar, Bocetildes está sempre às ordens.

Obrigado! – agradeci. E como saboreasse o aroma provindo da cozinha, disse-lhe – A senhora, além de uma rezadeira milagrosa, estou notando que é também uma excelente cozinheira. Como cheira a sua comida!

- Ah, o meu bacalhau! A bacalhoada da Bocetildes também é famosa! Isso aí, pelo menos, combina com meu nome – falou sorrindo. Em seguida me perguntou – Não quer provar um pouco?

- Ora, se quero! – respondi.

- Você de tímido não tem nada! – disse-me ela – Venha sentar-se à mesa. Agora só lhe peço uma coisa: quando sair daqui cheirando a bacalhau, não vai dizer por aí que estava comendo Bocetildes, viu?

E mais uma vez caiu numa gostosa gargalhada. Que figura! E que poder! Agora, Bocetildes é para mim, um nome normal. Esta senhora que se denomina assim, curou definitivamente a minha enxaqueca e a minha caretice, também.