A RECRIAÇÃO DO MUNDO

Para o amor que recriou meu mundo,

Minha boca e minha maçã,

Caio.

E quando a última estrela se apagou no céu e fez do Universo uma mancha preta sem início nem fim nem centro, ela assustou-se. O nada a engolia e mesmo não sendo nada, era alguma coisa, pois era o primórdio e o derradeiro, o vazio e o absoluto.

Suspirou profundamente. Tanto que o nada tremeu. O seu suspiro, que já fora quase nada em meio ao tumulto do tudo, agora trovejava e foi um tremor tão forte que fez o nada sacudir.

Sentia medo, sentia frio. O nada era assim, desagradável, pouco confortável, nada, nada amistoso.

Estar no nada e sozinha era a última coisa que queria, a última coisa que esperava. Estar no nada diante de uma vida para viver era o nada dentro do nada e não havia ninguém para se voltar em desespero.

Deitou no nada em que o tudo se transformou e não precisou fechar os olhos porque mesmo mantendo os olhos bem abertos o que via era o nada puro e não aquele que costumava manipular com o selar de suas pálpebras.

Experimentou tocar seu corpo. Já não tinha certeza de sua existência, já não tinha certeza de seu ser. O mundo se transformara em nada e quem sabe não era ela mesma uma espécie de nada, uma espécie que poderia tocar a si mesma.

Poderia mesmo. Tocou os cabelos, nariz e seios. Tocou barriga, pernas e dedos dos pés. Tocou dentro. Tocou a pele sobre o coração e sentiu-o bater.

Escutou-o bater. Forte. Alto. Mais forte e mais alto que o nada.

Seu coração não era o nada, mas bem que poderia ser. Já que o tudo foi engolido, por que não o seu coração? De que lhe adiantava conservar um coração vivo e pulsante no meio de todo aquele imenso nada? Abraçou os joelhos com os braços e apertou-os bem forte. Enfiou, de algum jeito, a cabeça entre eles, tão enfiadinha a ponto de praticamente sucumbir. Sentiu seu hálito esquentando o peito. Ar quente e úmido. Encolheu-se mais e mais até quase sumir. Seus ossos doíam, mas ela não parava, queria consumir-se, desintegrar-se, diluir-se em nada e perder a consciência, pois a consciência do nada é que faz o nada existir.

Permaneceu assim por muito tempo.

O tempo, no nada, dobra de tempo.

E não passa nunca.

Como manter a noção do tempo diante do nada? Eis que o tempo também se torna nada.

Mas ocorre que o nada, apesar de nada, é vivo, existe. Guarda em suas entranhas um resquício de algo inexplicável, algo que inexplicavelmente pode pulsar. Ela estranhou aquele pulsar, pois não era o pulsar descontrolado que soava em seu peito e que não a deixava em momento algum do tempo se desligar do nada. Era um pulsar suave e gostoso, um abrir e fechar, um mexer cadenciado e úmido, que só no silêncio absoluto podia ser percebido, que fez com que ela se movesse um pouco, bem pouco, apenas o suficiente para espiar um pedacinho do nada e ver o que diabos estava acontecendo por ali.

Só que o seu pouquinho foi tão pouquinho que tudo o que ela conseguiu enxergar foi uma espécie de boca (boca?). Uma boca bem vermelha, tão vermelha que se destacava no meio do nada (boca no meio do nada?). E era carnuda. Deliciosamente carnuda. Movia-se num ritmo macio que dava gosto de ver e de tanto gosto ela moveu-se mais um pouquinho para tentar enxergar ainda melhor. Abriu bem os dois olhos e esticou o pescoço. A boca parecia que dizia algo. E ela queria ouvir. Prestou atenção. A boca parecia dizer Camila, mas só parecia, não dava pra ter certeza, estando assim, tão longe.

Camila então espichou um braço. Mexeu os dedos, um por um. Estavam tão dormentes, seu corpo todo estava tão dormente, que ela quase desistiu de continuar. Mas sua curiosidade foi maior que a dormência de todos os seus outros sentidos e ela não resistiu. Respirou fundo e mexeu o outro braço. Apoiou-se e ficou olhando praquela boca vermelha, linda, que parecia dizer seu nome sem parar. Era mesmo só uma boca, uma boca vermelha no meio do nada escuro, e era tão bom olhar praquela boca que ficou pensando se era bom também beijar.

E Camila não agüentou muito tempo. E o tempo agora misteriosamente corria no mesmo ritmo do tresloucado bater do seu coração.

(TUM TUM TUM Chegou pertinho da boca. TUM TUM TUM Olhou fixamente pra ela. TUM TUM TUM Sim, ela dizia seu nome. TUM TUM TUM Baixinho, bem baixinho. TUM TUM TUM Um sussurrar sensual. TUM TUM TUM Que boca mais gostosa. TUM TUM TUM Que vontade de beijar.)

Camila, num impulso, empurrada por aquele bater alucinado dentro de si que já não tinha mais controle; intimada por aquele chamar incessante de seu nome, “Camila!”, TOCOU a boca. E ela era mesmo tão deliciosa quanto parecia. Tocou com um dedo, com dois, com todos. Não agüentou, não pode controlar, BEIJOU. Mordeu. Lambeu. Chupou. Beijou de novo. E de novo. Um beijar sem fim. Um beijar eterno. Um beijar sem vontade de parar de tão bom que estava beijar. E Camila beijou tanto e tão profundamente que quando abriu um olho, só um, deslumbrou-se. Havia um rosto naquela boca, com olhos que olhavam diretamente na sua alma e um sorriso que tocava diretamente a sua alma, pois, de repente, tinha alma.

Camila assustou-se, deu um passo para trás. Cambaleou, lívida e apaixonada. Seu corpo todo se arrepiou, se eletrizou, pediu de volta aquele outro corpo, aquele calor, aquela coisa que não dava pra entender, mas que era boa, muito boa, que era algo além do nada, que invadia o nada, que enchia o nada de tudo, que era o tudo em forma de homem, um único homem, o homem da sua vida.

Pulou de volta praquele beijo, praquele abraço, praquele cheiro, praquela pele que era feita da sua pele, continuação sua, pedaço dela mesma que em algum momento lhe foi tirado, mas que agora voltava definitivamente para si, porque o lugar dele era mesmo ali e qualquer outro seria novamente o nada.

E assim EU e TU, ao contrário da célula que nasce e se desdobra em várias até criar uma forma inteira, que se multiplica sem parar por todos os espaços que houver ao redor; nos fundimos e nos tornamos UM, apenas um, sem começo nem fim, sem saber qual é qual, ocupando um único lugar no espaço (sim, é possível), matéria pulsante de vida, a essência inicial que torna o existir possível, o sopro: NÓS.

O NÓS que recriou a luz e rasgou o escuro, que recriou o verde que cobriu o chão, que recriou o azul que inundou os vãos, que recriou a Natureza toda que rapidamente renascia daquela força, daquela vida, daquele AMOR, daquele beijar eterno que não acabava porque simplesmente não conhecia motivo algum para acabar.

(E essa é a história da REcriação do mundo, pois a da criação já estão todos carecas de conhecer, e de delícias, naquela, só mesmo a maçã).

Mulher de Sardas
Enviado por Mulher de Sardas em 19/05/2006
Código do texto: T159069