[Meus Olhos de Cão Faminto]

[A saga da casa do alpendre cor-de-rosa - Intertextos meus]

Aquelas ruas por onde andei - Araguari – MG...

Aquela rua começa nesta foto amarelecida de tantos anos. Acaricio a foto, contemplo-a, e então, entro por ela, retrocedo às manhãs dos meus 12 anos de idade. Aí, neste umbral do tempo, eu paro. Se mais recuasse, eu chegaria ao quintal dos meus cinco anos, e não desejo voltar ao quintal, agora não. Paro, e espio aquela casa com um amplo alpendre cor-de-rosa. Tenho dúvida se era só a cor rosada do alpendre que me acendia o desejo de beijar os lábios daquela moça rica que lá ficava, quieta, a contemplar a rua. Mas o fato é que, se ela não estava no alpendre, eu me perdia no rosa suave das paredes sem vida... ah, os lábios dela, onde estariam?

O tempo se desdobra em vagas nos caminhos da mente: não faz muito, apenas algumas dobras a mais nas franjas do tempo, esta mulher alquebrada que hoje habita a casa do alpendre cor-de-rosa, partia, ruidosa, descuidada, e cheia de vida para o baile no clube em que eu não podia entrar — excluído pela idade, mas principalmente, excluído por não contar entre os bem-nascidos dessa cidade mesquinha. Naquele baile mágico, eu não entrava mesmo, apenas olhava da penumbra da rua as feéricas janelas iluminadas, e lambia, de longe, as luzes do salão; tentava captar traços do perfume das mulheres que, vez por outra, escapava pelas janelas abertas para a rua. Então, eu, feito um cão magro que se toca de debaixo da mesa farta, apenas lançava o meu olhar úmido, faminto; faminto de também poder viver a vida que eu apenas imaginava só existir, e só valer a pena, se eu pudesse estar naquela festa.

Mas agora, olho o alpendre envelhecido de onde não mais saem belas moças orgulhosas para os bailes do clube proibido para mim. A luz incandescente do alpendre, mantida acesa pelo guarda do espólio, ilumina a decadência manifestada nas paredes descascadas, nas janelas com papelões em lugar dos vidros, todos quebrados. Na parede do fundo do alpendre, a portinhola do nicho da santa está travada semi-aberta, coberta de poeira e teias de aranha. Lá dentro, a santa está sem flores, e no escuro, pois há muito, ninguém troca a lâmpada queimada...

Mas ao contemplar a derrocada desta casa, outrora magnífica, arrogante, ruidosa dos afazeres dos seus ricos habitantes, eu ainda sinto ressaibos daqueles tempos, como se os olhos duros que me fitavam desde o alpendre pudessem voltar à vida. E novamente, meus olhos são os de um cão magro, faminto... mas, agora, faminto de quê?! Faminto por entender o inexorável esmoer de sonhos... A vida é um absurdo — isto diz tudo!

Eu venci a pobreza; superei a vida indiferenciada das gentes mal-nascidas, foi dura a minha batalha. Mas ao contemplar esta casa, este alpendre decadente, sinto este gosto amargo na boca, bate-me no peito, como um golpe, a presentificação de uma derrota pretérita; a casa foi vencida sim, pelo simples rolar da vida, mas um fato permanece para sempre: eu nunca adentrei o alpendre cor-de-rosa para beijar a moça orgulhosa. Essa batalha, a casa venceu contra mim; enquanto ela era forte e rica, eu nada era, e isso me dói. E agora, contemplar a derrota da casa, de nada me serve... olhar aquela nobreza vencida apenas me dá náusea! Não tenho e não vou ter nunca o gosto vindicativo de ser eu a pisar aqueles orgulhos, de nada adiantou eu voltar e não poder esmagá-los; não executarei a vingança.

Desde a rua, agora morta, estes meus olhos continuam assim, famintos... mas, famintos de quê? Seria realmente necessário procurar entender o dilacerar de carnes através dos tempos? E esta vida, tem algum eixo, algum norte? Não tem nenhum; a vida não é para ser entendida, é para ser vivida.

[Penas do Desterro, 11 de abril de 1998]

Excertos do meu "Caderno 1"