O NASCIMENTO DE LUCAS

Aqui nesta calçada mataram o Moço. Exatamente aqui, neste ponto onde estamos. O sol, a chuva e os passos das pessoas já trataram de apagar a mancha de sangue. Ou as manchas, não sabemos ao certo quantas manchas foram formadas pelo sangue do Moço quando tombou, já defunto, com dois projéteis alojados em seu esquálido corpo de trabalhador de hidráulica. Aqui, bem na frente desta agência bancária.

À época, foi acontecimento de grande, ainda que breve, repercussão.

Quem roubou e matou o Moço? Ninguém sabe. Houve quem dissesse que eram dois, os homens. Há quem, até hoje, diga que eram três, contando um que ficou de campana do outro lado da avenida, num ponto de ônibus. Mas a maioria que viu não diz nada. Diz, mas diz que não viu. Melhor assim. Hoje em dia, pessoas são mortas por um nada.

O Moço, mesmo. Depois de oito anos de firma, fez acordo com o patrão para sacar o dinheiro depositado no Fundo de Garantia e poder pagar o parto do primeiro filho em hospital particular. Dizia que não ia botar a mulher num hospital da rede pública e correr o risco de ficar viúvo, como em um caso que ele havia recentemente visto numa reportagem da televisão. Deus que o livrasse, daria um jeito. Filho seu não haveria de nascer mal nascido. Ainda mais o primeiro.

Sonhava em poder levar a mulher, tão logo viessem as primeiras dores, a um lugar limpo, decente, higienizado e seguro, com enfermeiros e médicos competentes, anestesistas e outros profissionais capacitados acompanhando sua família desde a chegada ao hospital até a saída, todos felizes, numa sorridente foto na porta da maternidade, o carro com as portas abertas esperando a família voltar pra casa, ele correndo atrapalhado e agradecendo a todos, apertando as mãos dos médicos e das enfermeiras, dizendo “obrigado, obrigado”, a mulher tranqüila, o filho dormindo. Lucas. O pré-natal, se orgulhava, havia sido feito meticulosamente nas datas combinadas, sem faltar nenhum dia, em clínica particular. Tudo pago à vista. E ele acompanhara tudo, fora às consultas. Estava presente quando o ultrassom revelou o sexo da criança: Lucas. Nome forte, bíblico, decidido e sem frescuras. Simples. Lucas.

Patrão bom, compreensivo, concordara em liberar o empregado uma tarde por mês, para acompanhar a esposa ao médico. Dez dias antes da data marcada para o parto, tudo já estava combinado: assinariam uma rescisão de contrato fictícia, ele levaria a papelada ao banco para poder sacar o dinheiro a que tinha direito pelos oito anos de trabalho na firma, e assim poderia proporcionar ao seu primeiro filho que nascesse em um hospital particular. Um lugar decente.

Na noite anterior à sua morte, ele estava radiante. Disse aos colegas que dera tudo certo, que conseguira a liberação do dinheiro com o patrão, que era gente muito fina, e que seu filho não viria ao mundo em um Pronto Socorro como o que vira na reportagem. Chegou em casa, deu a notícia à mulher, os planos de sacar o dinheiro e levar para depositar em outro banco, onde tinham a poupança. Ela ainda quase perguntou “não é perigoso você andando no meio da rua com esse monte de dinheiro no bolso”, mas ele estava tão radiante que ela desistiu, não estava ali para estragar a felicidade do marido. E, além do quê, mesmo se tivesse falado, provavelmente ele sequer ouviria. Só pensava no quadro, definido há tempos na sua cabeça: o quarto branquinho, geladeira, lençol e toalhas limpas, telefone, televisão, visita liberada para os parentes e amigos mais chegados, a sorridente enfermeira, em seu uniforme impecável, trazendo Lucas para mamar na mãe de rosto tranqüilo, ele batendo muitas fotos, posando para outras, e no dia da alta médica deixaria na portaria o cheque com o alto valor do parto, dos medicamentos, da internação. Um parto limpo e sem sustos, num lugar decente, sem os sobressaltos e tragédias da rede pública de saúde. Na reportagem da TV, chegaram a dizer que no Pronto Socorro Municipal não havia soro nem esparadrapos, e que os funcionários ameaçavam entrar em greve pelos salários atrasados. Deus o livrasse. Se alguém da família tivesse que ir para o Pronto Socorro, que fosse ele.

Ainda hoje, há quem diga que foi alguém da firma quem avisou os bandidos, que naquele dia, naquela hora, naquele lugar, o Moço sairia com dinheiro distribuído em dois bolsos da frente, disposto a defender até a morte o direito de seu filho vir ao mundo num lugar decente. Outros dizem que a culpa é do próprio Moço, uma vez que sair com dinheiro na rua, hoje em dia, “é pedir para morrer”.

Lucas, por sua vez, não diz nada –mesmo porque só agora está aprendendo a falar. Nasceu na Santa Casa, três dias depois do ocorrido, e dois dias antes de cortarem a luz do hospital por falta de pagamento.