BORGO VALSUGANA: buscando vestígios

        Desci do trem que serpenteava o vale, de Bassano del Grappa até a cidade de Trento, e cortava os Alpes Italianos, uma extensa cadeia de montanhas.
        Estação: BORGO VALSUGANA.
        Pausadamente, fui caminhando sob o sol tépido do denso inverno que findava. Lágrimas pululavam em meus olhos. Olhei casa por casa, perguntando-me: “Será que meu bisavô morou ali? Ou lá? Será que minha bisa caminhou por esta rua?”. Perscrutei olhares e rostos, buscando traços de meus antepassados que ali viveram. Fui fotografando as velhas casas, as floreiras secas, o castelo no alto da montanha, as placas e avenidas, o rio Brenta, as escarpas rochosas, e tudo o mais.
        - “Posso fazer fotos de sua casa?” – perguntei a uma senhora que olhava a rua.
        - “Sim” – assentiu;... me sorriu e se achegou. Fui contando a minha história... “Meu bisavô Danielle Tomio e minha bisavó Josephina Gianesini nasceram nesta cidade”. Ela se entusiasmou: - ‘Verdade?!”... sim... (fui falando...) –“Ali ao lado mora uma Tomio, ela tem 84 anos, e uma badante (dama de companhia) cuida dela”. – “Nossa!... que sorte!” – pensei. – “Fale com ela,... quem sabe é sua parente”. - Atravessei a rua e segui até lá.
Bati na porta. Conferi o nome na caixa do correio: “Maria Capraro Tomio”. Era uma hora da tarde. Bati novamente e esperei. Ninguém apareceu. Olhei em volta e gravei mentalmente a casa, o portão. Segui em frente.
        Fui desatando a emoção, relembrando as histórias que minha mãe contava. Meus pés pisavam com a sensação de seguirem os passos de meus parentes distantes, já falecidos. Mas, agora, eu ali,... sentia a presença deles... tão próximos de mim.
        Segui para a praça central, onde se localizavam a Catedral, a prefeitura e uma fonte ao centro. A cidade se descortinava quieta: hora da sesta. Fui entrando na Prefeitura (Comune), sem movimento. Olhei os painéis nas paredes laterais. À esquerda, um desenho (planta) mostrava o tal prédio como fora construído em 1668, inicialmente, Monastério Clarisse. No pátio interno, umas colunas antigas e suas arcadas, ... afrescos nas paredes e floreiras secas,... e um poço jazia esquecido no tempo. Parei pra observar o outro painel. Era um desenho em nanquim, representando um incêndio e com dizeres surpreendentes! Trouxeram-me prováveis respostas a velhas interrogações sobre as causas da imigração de meus bisavós para o Brasil e de tantos outros. Impressionou-me a proporção do acontecido: em 1862, quando o Trento ainda pertencia à Austria, 320 famílias perderam suas casas, num total de mais de 1670 pessoas, justo ali, em Borgo Valsugana. Pelos dizeres, a cidadezinha era uma pequena vila, talvez uns 5.000 habitantes, naquele tempo, e o estrago do fogo foi gigantesco. Eu fiquei ali comovida diante de tão triste descoberta. Teriam sido meus bisavós vítimas de tal incidente? É possível. Pode-se ver que quase toda a cidade foi atingida. Pois, com tantos sem nada, sem teto, sem abrigo, como teriam enfrentado tempos tão duros e a neve impiedosa que, aos invernos, cobria a província inteira?
        Fiz as contas: meus bisavós vieram no ano de 1876, então, 14 anos após o tal incidente tenebroso. Eles eram crianças, pois vieram moços para cá. Imaginem o choque de tudo aquilo e as dificuldades dos pais. Juntemos o fato de que sucessivas guerras arrasaram o solo austríaco, varrendo as plantações e sangrando os corações de muitos. Talvez, nem eu, nem você, sejamos capazes de avaliar a dor, o tamanho do desespero dos habitantes naquela época, daquela região.
        Segui e entrei na antiga catedral “Pieve della Natività di Maria”, com inscrições nas paredes externas meio apagadas e imagens belíssimas no interior. Uma abóbada esplêndida cobria velhos bancos de madeira maciça, encantadores anjos permaneciam pintados, graciosos, nas paredes em afrescos, e o órgão sonante da igreja, outro tesouro, a se admirar. Renomados pintores venezianos e trentinos a decoraram internamente.
Ajoelhei-me diante do Jesus Cristo. Sua imagem na cruz ali nos perdoava. Rezei a Deus por meus bisavós e pela nona Ermínia, pelo nono Silvio e, também, pelo bisavô Francesco Caresia e bisa Ernesta.
        Do lado oposto desta catedral, à frente da porta principal, outra igreja: “La chiesetta di San Rocco”, contruída em 1509, recém restaurada. Subi alguns degraus, procurei a entrada e, que pena!... não deu, estava lacrada. Pena mesmo! Na torre da igreja os sinos repousavam.
        Caminhei pausadamente, observando tudo em volta. Mais adiante, um antigo teatro estava em restauração; no grande colégio pintado de amarelo e azul, alunos estudavam, do outro lado, ali perto. Voltei, buscando outras relíquias. Ao descer por uma ruela, deparei-me com um cartaz: Museu da Grande Guerra.
        – Olá... fui entrando. Um senhor idoso conversava com a atendente; ambos me cumprimentaram. Fotos e mais fotos se viam nas paredes; adiante, bonecos em uniformes antigos de soldados, baionetas, fuzis, baús, armas, retratos de soldados, uma trincheira embaixo do chão coberto com vidro onde eu pisava,... e tudo o mais. Li uns nomes, curiosa... mas não me eram conhecidos.
        - “Veio visitar o museu? São 3 euros, tem também um vídeo, da nossa grande guerra” – me disse a moça muito simpática.
        OK... Na sala central, sentei-me meio inquieta. O vídeo iniciou com seus sons lúgubres, sinistro... a lembrança de horrores me incomodava.
        - A grande guerra: 1914 – 1918.
        Poxa, tem um erro (pensei)... a grande guerra foi em 1939... fui prestando atenção... 
        - “Os nossos cidadãos de toda Valsugana foram os heróis desta grande guerra, quando italianos e austríacos  se enfrentaram, em 1914, ... centenas de homens foram mortos, ... todos se mobilizaram, vieram soldados de todas as províncias, tudo foi muito violento. Um esquadrão suicida, com homens mais velhos da região, foi ao encontro da morte,... por falta de preparo foram todos pegos de surpresa, no alto da montanha".  Então, fui entendendo o porquê: a região austríaca de Valsugana fora barbaramente afetada, pois esta terra fora muito cobiçada pela Itália. Uma guerra sangrenta se travou naquele chão que eu pisava... Foi nessa ocasião, que a Província de Trento fora anexada ao território italiano. É, atualmente,  autônoma (porque os impostos recolhidos retornam para a região), e muito bem desenvolvida. Seus cidadãos, em geral, falam o italiano e o alemão. 
Ergui-me. Encontrei a moça de prontidão, pois logo o museu fecharia as portas. Parei pra contar-lhe minha história, da procura de vestígios dos meus bisavós e, também, de possíveis parentes. Ela, amavelmente deu-me um livrinho de outro museu, em Olle, do outro lado, justamente a vila que eu procurava, com folders e mapas da cidade que se incrustava dentro do vale. 
        Saí pro sol, ameno e acolhedor. Atravessei uma ponte secular, uma entre tantas pontes sobre o rio Brenta. Que belo cenário se descortinava! A cor âmbar do entardecer deixou tudo muito dourado e róseo. Caminhei, margeando o rio, pela ruazinha que o serpenteava. Passei por galerias e arcadas pintadas, antiquíssimas. Uma estátua de mulher enfeitava uma rua; um grande mapa indicava o nome das montanhas, uma rua seguia para Olle, do lado direito do rio.
        Entrei num café. Bebi um capuccino. Olhares atentos me seguiam. Alguns clientes, moradores do lugar, notaram-me, pois eu tudo fotografava. Conversei com uns senhores. Naturalmente, contei minha história, que tanto me orgulhava.
        - “Meus bisnonos serravam árvores, - contava-me um corpulento velhote – e, depois, desciam-nas pelo rio até Veneza”. (Veneza foi durante séculos um grande pólo de escoamento da produção; capital da província do Vêneto exercia grande poder economico-financeiro em todo o norte da Itália).
        - “Impressionante!... meu bisnono Caresia fazia o mesmo: serrava árvores e as amarrava, e, depois, fazia-as descer pelo leito do rio até o Porto de Itajaí (no sul do Brasil)”.
        - “Nossa! Quanta semelhança!” – eu estava descobrindo o mundo... quantas coisas estavam interligadas. Um daqueles cidadãos disse a uma senhora sentada num banco: eu sabia, eu sabia sim, que os que saíram daqui não foi a gente ruim, como alguns dizem, pelo contrário, foi gente muito boa que emigrou, foram as melhores cabeças, gente inteligente e batalhadora, e foram lá, sim, foram fazer a América... construíram cidades!  Era verdade, pensei: os Tomio, Caresia, Pedrini, Pavesi e outros ergueram a Botuverá que eu amo; onde nasci. 
(Italianos e Trentinos se interligavam de tal forma, que nem me dei conta que emigraram de diferentes países: os Tomio, Gianesini, Caresia, Demarchi vieram do Trento - Áustria; os Pavesi, Pedrini, Maestri, entre outros, vieram da Lombardia - Itália).
        Logo depois, despedi-me dos gentis italianos do café Itália. 
        Voltei novamente pro endereço da Sra. Tomio, pra ver se a encontrava... mas a casa estava fechada, janelas e portas. Não insisti. Fui adiante.
        Mergulhei no túnel do tempo... fui caminhando e imaginando minha bisa de saia longa, cabelos longos presos, tamancos de madeira pisando aquele chão. Atravessei o viaduto sobre a estrada de ferro. Segui na direção de Olle.
A montanha irrompia do solo, rochosa, imponente, ainda nevada, com apenas ralos galhos secos aqui e ali. Todo o vale mal era banhado pelos raios do sol, e, àquela hora (5:00 hs), só os picos das montanhas gozavam deste privilégio. Fixei meu olhar naquela paisagem. Tão pouca terra para cultivo e tanta rocha em volta... sim, dava de entender mais um motivo pra sair daquele lugar.
        As casas de Olle de Borgo Valsugana eram de alvenaria e quase todas de dois pavimentos, como a maioria nas terras trentinas. Mas o impressionante, ali, era que elas ficavam exatamente ao pé das montanhas. Os Alpes eram altíssimos. No centrinho do vilarejo, procurei o tal museu... logo ali ele estava. Uma casa antiga reformada, com uma grande parede de três andares de madeirinha clara:
Casa Andriollo” – Museu das Mulheres da Montanha.
A casa datava de antes de 1860 e  tornara-se um museu. No seu interior, vestimentas e utensílios daquele tempo, junto com mobílias e fotos antigas. Ali estava o registro de uma época, onde as mulheres tinham de ser muito fortes; um tempo que não dava trégua em suas labutas, na luta com filhos que nasciam um após o outro, e maridos que iam para as guerras,... elas, certamente, não tinham momentos de deleite como hoje temos. Pobres senhoras! Matronas incansáveis! Mães e avós, cujos feitos mal são reconhecidos. O museu devolvia a essas senhoras toda a gratidão por suas lutas, por sua dedicação às famílias e ao povo do lugar.
        Anoiteceu. Um frio intenso encheu a terra. Dois graus!... (vesti minhas luvas).
        Uma revista de Bassano del Grappa (IT), que eu portava comigo, chamou-me a atenção para  um artigo sobre Campolongo (Vêneto): o plantio de  fumo iniciou-se nos séculos XVI  e XVII , e logo alavancou a economia, tanto que Veneza assumiu o seu monopólio. Até a metade do século XIX, este plantio foi a principal fonte de sobrevivência de todas as regiões à direita do rio Brenta. 
O rio Brenta nasce no Trento e atravessa a cidade de Borgo Valsugana, o que nos faz crer que também seus habitantes estariam cultivando fumo como meio de sobrevivência. Segundo o texto, o fumo era considerado um produto medicinal, inicialmente. Este fato, é bastante relevante para entendermos a emigração.
Então, o estado veneziano passou a considerá-lo ilegal, tanto a plantação quanto a comercialização. Esta atividade ilícita chega ao ápice em 1866, logo depois da unificação da Itália. E foram expedidos, naquela época, mandados de prisão: entre 1871 a 1900, houve cerca de 8000 processos. Creio que estes processos se referem ao Vêneto. (Bass@no news – janeiro/fevereiro/2009, pag.39). Este fato, segundo a Revista, contribuiu para o aumento decisivo da emigração.
Possivelmente, esta pode ter sido a derradeira gota d’água. Meus bisavós fizeram parte daquele grupo que se cansou das labutas sem fim, naquele solo inóspito.
        Enfim, satisfeita com meus achados, agradecida a Deus por ter me dado a chance de pisar naquele solo amado, com meu coração transbordante de nostalgia, caminhei de volta até a estação. 
        Logo, o trem veio me buscar de volta ao terceiro milênio. 


                                 Maróstica (IT), 05 de março de 2009.

                                          IZABELLA PAVESI.



PS.: Publicado na revista INSIEME (ítalo-brasileira) - edições nº 128 e 129