Delírios e Chaminés

Ela sorveu as últimas gotas da taça de vinho. Tentou contar quantas garrafas já tinha bebido, lhe pareceu três ou quatro. Procurou em vão por sobre a mesa seu maço de cigarros. Deu uma olhada rápida nos quatro cantos da sala e não o encontrou, as pernas já não lhe obedeciam e decidiu não procurar mais. Olhou para a janela, sua opinião sobre a vista do décimo andar continuava a mesma de quando entrara no apartamento pela primeira vez: horrenda, um mundaréu de chaminés soltando suas fumaças, carros com as suas fumaças igualmente gris, e o mundo correndo a procura de algo que ninguém sabe o quê. Nunca quis viver sua vida ali, mas a proximidade da faculdade a obrigara a aceitar as cuspidas industriais todos os dias, contudo ela nunca se acostumara.

Decidiu sentar-se. Jogou-se no sofá com o braço esquerdo reto, enquanto que a mão direita estava dividida entre acariciar-lhe os cabelos e tirar pingos de suor da testa. O sangue saltitava em seu corpo, e o efeito das drogas acalmou-lhe as frustrações. Só então notou que o aparelho de som ainda estava ligado e uma cantora que ela não sabia quem era cantava qualquer coisa incompreensível. Pegando caminho naquela melodia, tentou embalar outra, criando palavras conforme sua mente permitia.

Quando cansou de cantar seu braço começou a formigar, e ela olhou para o teto fixando-se no ventilador, que girava sempre e sempre, sem parar. É como as pessoas, pensou, por mais que se faça, o mundo se torna mais ou menos um círculo para todos.

O telefone começou a tocar, mas ela não sentiu vontade de atender. Porém a curiosidade lhe bateu. Quem seria? Paulo? Não, há essa hora Paulo não ligaria. Mamãe então? Também não, não se esqueça que ela acabou de viajar, pensou. Ah! Pode ser a Claudinha. Ah que droga, não quero falar com a Claudinha. Não quero atender ninguém, nem se for o Lúcio. Isso mesmo, nem o Paulo nem o Lúcio. E logo o misterioso insistente desistiu.

Sua cabeça começou a girar. Deve ser o vinho, pensou. Não há problema, agora em voz alta, prometo a mim mesma que este será meu último porre. E gargalhou bem alto, sem se importar com quem pudesse ouvir. E perdeu o controle, riu muito, como se estivesse no circo; então viu palhaços a sua volta, rindo todos juntos, enquanto um deles se aproximava dela para colocar-lhe um nariz vermelho. Logo depois sumiram.

Olhou para fora, o sol já estava se pondo, e os músculos de seu rosto enrijeceram. Agora os dois braços formigavam e já não sentia as pernas. Em um estalar de dedos veio a sua mente seu álbum de fotos, organizado cronologicamente. Sentiu saudade de vê-lo, mas não era necessário buscá-lo, pois a ordem das fotografias estava registrada em sua mente. Lembrou-se da primeira foto, a que seu pai tirara quando ela ainda estava no colo de sua mãe, envolta em sangue e com o cordão umbilical. A segunda foto era de quando ela já tinha cinco anos e foi tirada enquanto ela corria pela grama a balançar seus cachinhos, correndo do pai que estava com a mangueira na mão querendo dar-lhe um banho.

Sentiu-se um pouco sufocada, o ar era lhe insuficiente, mesmo com a janela escancarada e o ventilador ligado. Com o início da noite a penumbra confundiu sua mente e ela já não se lembrava mais da ordem das fotos. Várias, sem seqüência lógica ou temporal vinham à tona na sua mente. Foto do seu primeiro dia no primeiro emprego, foto da praia, das amigas, das tias, do namorado, dos coquetéis de bebidas, da festa de aniversário.

Então ela já não sabia se se lembrava de fotos ou de acontecimentos. Seu chefe gritando com ela, a prova mal sucedida, o namorado beijando a amiga, o bandido segurando sua boca no beco escuro enquanto levantava sua saia, o beijo proibido no professor de matemática, o tapa de seu pai, o êxtase das bebidas, o aniversário caliente, as aulas de alemão, passeios de bicicleta, seu joelho doendo quando jogava vôlei, o semáforo vermelho, os livros que nunca lera, as chaminés se esvaindo em dores.

O telefone tocava novamente e ela já nem o ouvia. Sua mente corria quilômetros trazendo à tona coisas indefiníveis e ela já não sabia se eram acontecimentos ou vontades não realizadas: cuspia em seu chefe, tomava banho nua na chuva, rasgava a prova da faculdade, corria a noite no cemitério, fazia sexo com a amiga.

Na confusão de cenas inexplicáveis e indecifráveis sentiu o peito apertar e como em um passe de magia sua mente parou. Sentiu o corpo todo formigando, uma falta de ar ainda mais sufocante e um forte sono tomou conta de seus olhos. Antes de fechá-los, ainda olhou pela janela e viu a noite já adulta com uma chuva fria a tocar-lhe. Ainda teve tempo de ouvir o telefone tocar pela última vez e ver a seringa em cima da mesa ao lado das garrafas de vinho. Virou-se e encostou a cabeça no braço do sofá.

Deu um ultimo suspiro e fechou os olhos. Dali não se levantou mais, adormeceu pouco tempo depois de ter tomado a última garrafa de vinho e de ter injetado veneno em suas veias.

Luigi Ricciardi
Enviado por Luigi Ricciardi em 29/05/2009
Código do texto: T1621567
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.