À Porta da Metafísica

O ser humano não nasceu para ser só. Sempre sentiu a necessidade de ter alguém por perto, de uma companhia, de calor humano. Desde os primórdios o homem tem essa necessidade. Foi assim com Adão, que se sentiu só mesmo se vendo cheio de coisas e tendo o Éden todo para si. Assim também ocorreu com os primeiros homens primitivos que precisavam andar em bandos para enfrentar os inimigos, sendo necessário também que dormissem todos juntos para que não morressem de frio.

E tem sido assim até os dias atuais. O homem precisa de alguém que o aqueça, que o proteja. Muitos, porém, por mais que o queiram, acabam sendo privados desse contato humano, seja por relapso, ociosidade, imaturidade, ou pela frieza do próprio destino, que às vezes insiste em fechar portas durante toda uma vida para determinada pessoa. Creio que meu destino se deu de uma fusão dessas razões citadas acima. A soma destes fatores resultou no que sou hoje: um nada, e ainda por cima só. Bem, contar-lhes-ei então a minha história.

Nasci há exatos noventa e um anos e um dia, numa cidade de médio porte, numa família nem pobre, nem rica. Não vivia no luxo, mas também não passava fome, e conseguia ter boa parte das coisas que queria. Porém, sempre fui uma criança doente. Desde muito pequeno vivi boa parte do meu tempo em hospitais, devido a vários tipos de doenças e infecções.

Não tinha amigos, nem na escola, nem na vizinhança. Às vezes conversava com um ou dois meninos da minha idade – que por sinal sofriam do mesmo mal que eu: sentiam-se bastante excluídos – no intervalo das aulas, mas não me misturava muito com eles. Eu não participava das atividades com os outros e essa era uma das razões por eu não ser bem quisto pela maioria. No que se refere às notas, eu tinha um aproveitamento exemplar, e por essa razão, aliada à outra já citada, apanhava sempre dos outros meninos, e as meninas riam de mim por conta dessa humilhação diária – até certo ponto justa e merecida, julgando pela visão deles, pois, não aceitavam minha superioridade intelectual.

Certa vez, quando tinha eu nove anos de idade - logo após a professora confirmar-nos em sala mais uma nota dez que eu tirara enquanto os outros não haviam ido tão bem – dirigi-me ao refeitório da escola, quando de repente, uma menina veio ao meu encontro e cuspiu-me na cara dizendo: “Seu quatro olhos, cdf de uma figa”, aos olhares e gargalhadas de todo o colégio. Senti-me a escória da humanidade. No começo não aceitei, mas acho que logo depois acabei mesmo aceitando que o era.

As meninas eram as que mais riam de mim, adoravam ver os outros meninos me aplicarem peças. Eles se exibiam com isso, e elas adoravam, coisa de instinto entende? E o bobão aqui era quem pagava o pato servindo de trampolim para os palhaços exibicionistas arrancarem suspiros das Evas tolas. Talvez esse seja um ponto crucial e de suma importância na análise de minha formação pessoal: eu tinha mais medo das meninas do que dos meninos. Era uma sensação estranha, pois, me lembro que desde muito cedo me sentia atraído por elas, mas ao mesmo tempo eu sentia medo, receio delas. Não sei se pela segurança própria que elas tinham– coisa que eu não tive, pois sempre fui um menino medroso - que elas manifestavam, ou por aquelas maquiavélicas gargalhadas de escárnio que soltavam assistindo minhas surras semanais, vezes diárias.

Acabei fechando-me por completo, tanto para amizades quanto para os namoricos. Ficava boa parte do tempo em casa brincando sozinho de futebol, ou assistindo desenhos, ou lendo, e às vezes, muito raramente, ia à Igreja. Essas eram minhas únicas atividades regulares, e eu não gostava de fazer nada além disso. Acabei tornando-me um menino preguiçoso e ocioso.

Fui crescendo e minha vida social não mudou muito. Consegui beijar pela primeira vez quando eu tinha exatos dezesseis anos, idade em que a maioria dos rapazes está perdendo a virgindade. E só beijei esta menina porque ela se interessou por mim e me agarrou próximo à Igreja. E tudo ficou por isso mesmo. Ela não mais me procurou e eu não a procurei. Outras paqueras foram aparecendo, mas sucumbiram no mar de insegurança da minha alma. Por mais que eu me interessasse ou me atraísse por alguém, eu não lutava por essa pessoa. Preferia sofrer sozinho e calado a me arriscar em uma aventura com a possibilidade de ser rejeitado, ou zombado – nunca tinha certeza se realmente as meninas estavam me paquerando, ou se estavam se aproveitando da minha situação para me zombar. Eu não arriscava, e quem não arrisca não petisca. E eu realmente não petiscava, não degustava, não me deliciava com as mulheres como os outros rapazes da minha idade. Mal sabia eu que o caminho para aquele sucesso todo deles era a perseverança. Os via com muitas mulheres lindas, mas eu não conseguia enxergar que para obterem este êxito muitos tapas haviam levado e sofrido inúmeras recusas. Como dizem, depois da cruz, a glória. O negócio era que eu não queria me esforçar, não queria me expor ao risco, queria tudo de bandeja, não movia palha. Talvez pelo fato de ter sido muito mimado pelas mulheres quando criança, eu queria que elas viessem até mim. E mesmo que eu quisesse ter alguma atitude quanto a elas, eu poderia me expor ao risco de ser novamente humilhado.

O que posso dizer de concreto é que aquelas atitudes, ou melhor, a falta delas me conduziu a uma vida solitária e carente. Eu vivia das sobras, e da boa vontade das pessoas em se relacionarem comigo. Veja bem, era difícil para as pessoas se relacionarem comigo, pois, para alguém se interessar por uma outra pessoa, esta tem que descobrir algo interessante nela. Se eu não me abria, se me isolava, como poderia despertar nos outros interesses e sentimentos bons para comigo?

Tamanha era a porta que eu colocava entre mim mesmo e o mundo, que só fui perder a virgindade depois dos vinte anos - uma vergonha para qualquer um – logo depois que decidi morar sozinho quando nem meus progenitores conseguiam viver mais comigo. Só fui viver ao lado de alguém quando estava eu próximo dos trinta anos, mas o relacionamento não durou muito, porque continuei agindo da mesma forma, eu nunca tinha segurança com as mulheres. E o tempo foi passando.

Cheguei aos cinqüenta anos com uma lista pífia de mulheres com quem me relacionei. A lista não passava de cinco nomes. Cinco mulheres sendo que com apenas três tive contato físico, cama, relação. Três em apenas um século, é uma marca invejável ao lanterna do campeonato de futebol. Eu realmente não me entendia, pois eu reagia da mesma forma com elas, mesmo quando as conquistava. Não conseguia me entregar, não conseguia confiar nelas, preferia os livros e o papel, estes sim faziam tudo que eu pedia, minha relação com eles foi sempre melhor.

Outra coisa que sempre me incomodou foi essa cidade, que, diga-se de passagem, é muito bonita, mas com um povo medievalmente atrasado. Passei a vida toda ensaiando mudar daqui. Primeiro quis sair depois da faculdade, não o fiz. Transferi para depois que terminasse os estudos do mestrado, não fiz também. Adiei a mudança para depois dos quarenta, onde dizem que a vida se recomeça. Não o fiz novamente e por aqui fiquei.

Minha família foi se acabando aos poucos e com setenta anos me vi sozinho, sem pai, mãe, irmãos ou pessoas com qualquer outro grau de parentesco, pois estavam longe de mim. Os que não morreram se afastaram. Tive uma velhice solitária, não muito diferente da minha infância. Acho que toda a nossa vida acaba mesmo sendo reflexo do que nos acontece na infância. Amigos, como já imaginas, não os cultivei. Não conseguia confiar nem mesmo naqueles garotos que, por sofrerem do mesmo mal, não riam de mim quando eu apanhava.

Morri tranqüilo, sem muitas dores, mas cheio de decepções no meu aniversário de noventa e um anos. O lado de cá onde estou não é nada do que imaginava. Porém, é muito parecido com o mundo em que eu vivia: é vazio. Cá até agora, ninguém veio me julgar, ninguém veio dizer-me se mereço o jardim celeste ou se devo pagar no fogo infernal os erros de minha vida. É quase tudo escuro, exceto por uma pequena vela que não se consome. Tenho direito a caneta, papel, uma cadeira e uma escrivaninha, onde fica a vela. As encontrei quando acordei deste lado após adormecer enquanto atravessava a porta que liga os dois mundos. Comida não tenho e não sinto fome. Parece que vou passar aqui toda a eternidade. E justo aqui onde achei que pudesse encontrar a cura para minhas dores, continuo com elas. Aqui as dores são mais fortes por que não há esperança de encontrar ninguém. Minha eternidade será como minha vida: solitária. O pior de tudo é saber que não terei uma nova oportunidade. Só temos, acredito, uma única passagem pelo mundo onde estais lendo minhas memórias agora. E esta vida deixei-a passar tranquilamente diante dos meus olhos enquanto me espreguiçava vendo as pessoas passarem, e aceitando como vaca de presépio a vida me fechando todas as portas possíveis.

Enquanto sofria as angústias de morte, delirando, tive um sonho, onde ninfas me serviam uvas e vinho no Olimpo. Eu era o centro das atenções, e elas me desejavam ardentemente. Vivia paixões ardentes com todas elas. Saí do transe somente à porta da metafísica, onde percebi que a vida tinha findado e que não havia mais volta. Às vezes imagino pessoas ao redor rindo e zombando de mim. Grito por socorro e ninguém me acode. Continuo sozinho, reflexo do que fui em vida, sem ter para onde correr, sem ter por quem clamar.

Luigi Ricciardi
Enviado por Luigi Ricciardi em 29/05/2009
Código do texto: T1621888
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