Brigadeiro

Era uma vez Brigadeiro, moreno de seus doze anos. Foi o doce mais amargo que a vida já confeitou. Vivia sem procurar sentidos, sentindo na pele negra brancos dissabores. Desde o terceiro par de anos que tinha a lua como companheira e vivia à mercê das gotas de chuva. Perdera a mãe que pouco vira, do pai nunca se soube. Teve irmãos, que devem estar perdidos pelos morros, que por estarem mais perto do céu brincam de deuses com suas armas de Olimpo. Jamais os viu, inclusive os deuses.

Zanzava o dia todo por entre as buzinas frenéticas no centro. Tentou muitas coisas na vida, chicletes, malabarismos, e balas. Nunca encontrou sorte por essas veredas, procurou outras, com insucesso maior. E caminhava sertões de fome e seca na grande cidade engolidora.

Doía-lhe a fome, apertavam-lhe as costelas. Jejuava religiosamente dias. E nas horas do desespero tinha a visão turva, tinha tremeliques e se socorria nos galões de lixo comendo qualquer rato que encontrasse. Nessas horas não sentia cheiro, nem gosto, sua fome necessitava de outros poréns.

Em seu mais recôndito canto, e não se sabia como, Brigadeiro cria não ser difícil existir, mas sim viver, com essa miséria nua e existência despercebida. Uma vez ficou horas do lado de dois senhores que conversam, a pedir gorjeta pela exibição de suas piruetas, enquanto os homens conversaram sem dar pela presença do menino. E com sua honra despida saiu a soluçar suas lágrimas de anjo escorraçado.

Porém Brigadeiro também tinha amigos. Fê-los nas andanças e desaventuranças de seu existir cataléptico. Brincavam de comer doces e de serem mágicos. Certa vez, nas brincadeiras inocentes, um dos amigos, com seu graveto-cetro de poder, tocou na cabeça de Brigadeiro, e o transformou em doce. Uma das meninas correu a lambê-lo, mas gritou com nojo ao tocar a pele suada do menino. Depois disse:

- Você não tem graça Brigadeiro, você não é doce, e não tem nada que te cubra.

E naquele dia, aprontando-se para dormir nas gélidas calçadas defronte aos belos apartamentos da cidade, Brigadeiro, que procurava algo com que se cobrir, pensava, pensava e ficava sem entender o que a amiga havia dito. Nunca conhecera o doce, ou melhor, pelo menos achava que nunca tinha visto, já o vira sim, mas não associou o nome à coisa.

Por vezes um passante caridoso dava-lhe moedas, ou mesmo algo para enganar sua peste. Sorria, o sol enfim das nuvens saía, e ele saía a correr. E então, no nirvana de sua tênue alegria procurava os amigos para dividir as migalhas que recebia, e todos alegres e contentes com seus estômagos quase inexistentes, mas cheios, partiram para as brincadeiras de fim de tarde.

Os dias se passavam e Brigadeiro não conseguia nada com que se forrar, nem seu verdadeiro choro nas esquinas das lavadeiras ajudava a alma faminta. Via muitos carros passando, alguns tinham as janelas abertas, e as pessoas que estavam dentro ofuscavam sua vista com alguma coisa que colocavam nos olhos que mais parecia o sol. E todos eles tinham os dentes brancos, a pele alva e os cabelos cheirosos e doces, porque Brigadeiro, mesmo com a distância, conseguia cheirá-los.

Sentiu vontade, então, de comer doce, daqueles que viu, certa vez, vários homens preparando pela vitrine da padaria. Era um doce preto, preto como ele, feito em bolinhas com alguma coisa da mesma cor a cobri-los. Mesmo com a loja fechada pôde sentir todo o frescor da paz que exalava do chocolate vindo da padaria. Quis saber que nome tinha o doce, e nunca veio a saber que o doce se chamava como ele mesmo. E ali ficou, por minutos, Brigadeiro olhando brigadeiro. Eram parecidos na cor, iguais no nome. Mas o doce era o sussurrado aljôfar das confeitarias, e ele o surrado, o sofrido, o amassado produto da sociedade moderna. Foi a única vez em que se viram.

Na noite fria e insensível, com a fome a arrancar-lhe gemidos, eis que passa um homem, de cabelos negros e pele com coloração parecida. Ao ver Brigadeiro sentiu pena, lembrou-se de quando era menino, e quanto a fome era um mistério para ele. Com o passar dos anos acostumara-se a comer menos e conseguia assim arrastar seu existir. Acabou por parar ao lado do garoto, e então lhe ofereceu metade de seu jantar, um bolo que achara nos fundos do supermercado. Brigadeiro nem conseguiu agradecer, seu instinto foi mais rápido, e sem sequer olhar o rosto do samaritano, devorou seus pedaços em pouco tempo, aliviando sua existência. O homem partiu, com o estômago cheio e a sorrir lembrando seus tempos de criança.

A noite esfriava cada vez mais, e Brigadeiro, de tão feliz que estava sequer se cobriu, nem procurou algo para dormir. O sono veio rápido, tão logo havia comido. E com um sorriso aberto nos lábios, Brigadeiro partiu, não se sabe em razão da grande quantidade de comida, ou pelo frio que à noite mandou. Acharam-no na manhã seguinte, ainda com o sorriso nos lábios e a pele levemente roxeada. Despediu-se desta confeitaria, onde foi, durante todo o tempo em que existiu, amassado, polvilhado, e porque não, muitas vezes assado, e no fim descartado.

Foi uma vez Brigadeiro, o doce-amargo do existir inconsciente e do ser-não-ser desta terra não gentil.

Luigi Ricciardi
Enviado por Luigi Ricciardi em 29/05/2009
Código do texto: T1621895
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