Em Busca de Liberdade

Apesar de tudo ainda quero tentar já que assim é que vivo, entre amores e liberdades! - pensei inquieta enquanto limpava o líquido que escorria do objeto de minha nova liberdade, e que manchava todo o chão. Nada mais me incomodava, o amor se extinguia do meu peito à medida que os suspiros finais iam se extinguindo também. Nem me importava com o trabalho todo que viria pela frente, a limpeza do bastão e do chão do meu apartamento. Enfim livre! Novamente esse sentimento ecoa em meu espírito. Como é boa essa sensação não é? Ver-se livre de algo que te incomoda é confortante. Imagino-me agora viajando solitariamente e sem rumo, sem ter com quem ou com o que se preocupar.

Sempre fui individualista, sou-o desde criança e ainda o sou. Meu ego sempre foi o centro de minha vida e não sinto vergonha em dizê-lo. Para mim os ideais iluministas acabavam-se exatamente no primeiro: Liberdade. Os outros dois? Nunca me importei com eles, deixo esse negócio de igualdade para as religiões e para os russos, e fraternizar nem no natal, só se for comigo mesma.

Lembro-me das surras que levava dos meus pais quando quebrava os brinquedos da minha irmã por não poder tê-los exclusivamente para mim. Outro grande motivo de pancadas e sermões eram minhas constantes fugas. Com cinco anos, durante uma tarde calma, vi o portão da rua aberto, e minha mãe não estava por perto. Algo me chamou do lado de fora, não era gente, não era nada concreto. Era como se o vento esticasse seu indicador chamando-me a conhecer as coisas além dos muros residenciais. Saí e andei por horas, sendo resgatada apenas oito horas depois sob prantos e impropérios paternos. Essa foi a primeira de muitas fugas. Eu me encantava com a rua, com o novo, com a liberdade, conceito que na época, claro, eu não sabia definir, apenas sentir.

O tempo foi passando e fui crescendo, e à medida que o fazia fui aprendendo a eliminar o que me incomodava, e também o que me deixava presa. Só de uma coisa eu não podia fugir: meus pais. Já tinha quinze anos e fugas se transformaram em sumiços constantes após as aulas. Uma vez, chegando em casa já bem tarde, fui entrando devagar para não ser notada, quando o cão de casa não me reconheceu e começou a latir sem parar. O sangue me subiu, peguei um pedaço de madeira e com um só golpe o mandei para o inferno canino quase separando sua cabeça do resto do corpo. Meus pais ouviram os latidos e o barulho da paulada. Levantaram e se depararam comigo segurando o pedaço de madeira ensangüentada e o cachorro morto ao meu lado. Pega em flagrante!

Levaram-me a um psicólogo. “Esta menina é louca” – diziam. “Precisa ser internada. Fugia quando criança, some constantemente, e agora mata o cachorro”. Depois de várias sessões fui liberada pelo psicólogo por não haver “nada de errado comigo”, com exceção “de um comportamento rebelde tipicamente adolescente”.

Ah, já ia me esquecendo de dizer. Outra coisa que aprecio muito além da liberdade, como quase todos é claro, é o amor. Gostei de muitos meninos desde muito cedo, mas todas as vezes que me apaixonava muito forte por algum deles, dava um jeito de ficar longe. No início fazia com que minha mãe me mudasse de colégio, ou mesmo de turno. Quando isso não funcionava, esperava escondida atrás de uma árvore e quando o garoto de quem gostava passasse, acertava um soco no seu olho. Fiz isso várias vezes e à medida que fui crescendo as surras foram aumentando. Certa vez humilhei um garoto na frente de todo colégio arrancando sangue de sua boca só porque havia se recusado a me beijar. Cheguei a ser temida pelos meninos que a partir de então, por uma conspiração coletiva ou não, passaram a não conversarem mais comigo.

Já mais crescidinha soube bem a não dar mais esses vexames públicos. Voltei a ser “bem comportada” para a sociedade num geral, que era só minha escola é claro, para voltar a ter crédito perante aos meninos. Um a um fui conquistando-os. Fiquei com boa parte deles, sempre depois das aulas quando dava meus sumiços de casa. E toda vez que me sentia presa, fazia de tudo para me desvencilhar deles. Se eles insistissem em continuar comigo, voltava a ser a bad girl de sempre, ameaçando-os com uma boa surra. Sabiam do meu passado e nunca mais me procuravam.

Não entendia bem essa relação de afeto, sentimento, prazer com liberdade. Ainda era tudo muito vago pra mim. Se eu me atraia, tinha vontade de algo, não gostava que nada me impedisse e fazia de tudo para conseguir o que queria, e também se algo me sufocava, tratava logo de correr. E assim fui descobrindo os maiores prazeres de minha vida: liberdade e amor. Mas como é difícil a fusão destes não?

O tempo foi passando e a sociedade cada vez mais impunha sobre mim o que eu deveria e o que eu não deveria ser. As coisas foram mudando e tive que de certa forma me mascarar para poder viver em meio às outras pessoas. O único local onde eu me sentia eu mesma, era o banheiro do colégio. Ali, eu entrava e dentre as quatro paredes eu conseguia voltar a ser eu mesma. Sentava, pegava uma caneta, e escrevia em todas as paredes: caralho, buceta, porra, liberdade, sexo, sistema podre, chupo mesmo. Desenhava coisas obscenas e escrevia tudo o que tinha vontade. Ali, ninguém conseguia me segurar, ali vinha à tona a parte mais original de mim. Pena que ao sair dali voltaria à realidade, ao colégio, à minha casa. Precisaria arrumar um jeito de me ver livre de tudo o que me sufocava.

Aos dezoito anos conheci um homem e resolvi me casar. Era um caminhoneiro amigo de meu pai, visitava-nos constantemente e vivia me olhando com o canto dos olhos todas as vezes que almoçava conosco. Era bem mais velho e solteiro, devia ter uns cinqüenta anos. Certo domingo, depois do almoço, enquanto meus pais atendiam um grupo de crianças que havia jogado uma bola, sem querer, em nosso quintal, ele me empurrou e fechou a porta do quarto. Empurrou-me contra a parede e me beijou. Não contestei nada. Quando meus pais voltaram, disfarçamos e voltamos para a sala de jantar. No dia seguinte, liguei para ele e disse que queria me casar. Ele aceitou na hora, é claro, um cara feio e ridículo como ele recebendo uma “proposta” de casamento de uma jovem bonita como eu era algo muito raro. Se recusasse perderia a oportunidade de sua vida. Em seguida conversei com meus pais. Horas depois ele estava lá, para oficializar o pedido. Meus pais mais pareciam estar livrando-se de um problema do que casando a filha mais velha. Tudo foi muito rápido e em menos de dois meses já estava morando junto com ele. Ele trabalhava fora e eu me virava como dona de casa. Nossas relações eram horríveis, eu sentia nojo dele, mas dava para agüentar, era apenas duas, três vezes ao mês, pois viajava muito.

Casei-me, claro está, pela liberdade. Não havia amor é claro, queria ver-me livre dos meus pais, queria viver uma vida nova. Já não os tinha por perto para me importunar, e como já era uma dona de casa, decidi não mais continuar a estudar. Dois coelhos mortos com apenas uma cajadada. Durante vinte e seis, vinte e sete dias por mês eu era livre. Tinha meus afazeres, mas poderia fazer o que quisesse sem que ninguém me policiasse e dissesse o que era certo e o que era errado. Muitas noites eu recebia visitas de amantes, a casa era só nossa e aí eu me revelava, era livre, fazia amor, escrevia pelas paredes. A minha casa era meu novo banheiro.

As coisas boas parecem durar pouco. Certo dia meu marido perdeu o emprego. Aí mora o problema: perdido a minha liberdade. Agora ele passava todos os dias em casa. Ele queria transar a toda hora. Vivia me dando ordens. Minhas orgias cessaram, meus passeios também. A única coisa que fazia era ficar em casa, no tanque, na pia, na tábua de passar. Tinha que cozinhar feito uma empregada e ser uma puta para o gordo horroroso. Mais um obstáculo em minha vida, eu precisava agir rápido. E não demorou muito.

Certo dia, fui ao mercado e comprei uma garrafa de vinho. Servi-o em duas taças. Enquanto ele se retirou para ir ao banheiro, coloquei veneno em sua taça. Ele não percebeu, e ao retornar, tomou-a de uma só vez. Jogou-me na cama e começou a tirar a roupa, mas não conseguiu enojar-me pela última vez. Assim que ficou totalmente nu, começou a sufocar e em alguns segundos caiu morto em cima de mim. Liberdade, novamente eu estava livre.

Tudo o que ele tinha ficou para mim, única herdeira do pouco que ele juntara. Resolvi vender tudo e ir embora. Fui para outra cidade e comprei um apartamento. Vivi bem durante alguns meses, sozinha e sem voz alguma para dar-me ordens, mas também sem amor. Há tempos alguém não me despertava a atenção. Há tempos também não tinha relação.

Resolvi então sair de casa certa noite para ir a algum lugar me divertir. Entrei em um lugar com pessoas bem vestidas e pedi uma bebida. Vi de longe um rapaz belo, olhos castanhos, pele clara, barba por fazer, estatura mediana. Tinha um charme que fazia todas as mulheres se encantarem por ele onde passava. Conseguiu arrancar também meus suspiros. Parou ao meu lado e pediu uma bebida. Não pensei duas vezes e puxei papo. Conversamos durante cinco minutos e quinze minutos depois já estávamos nus em um quarto de motel fazendo amor. Apaixonei-me, então. Saímos mais algumas vezes e em menos de um mês estávamos morando juntos. A relação foi boa durante algum tempo. Eu saía, me divertia, e quando chegava em casa, eu era toda dele. Amamo-nos sim. De certa forma, eu era livre.

Até que um dia comecei a perceber que ele também saía. Chegou tarde por várias vezes, sinais de batom em sua roupa. Enfureci-me, senti ciúmes. Na verdade o meu amor por ele crescia cada vez mais. Muitas vezes eu saía de casa para me divertir e ficava pensando nele, não conseguia me concentrar em mais nada, o amor que eu tinha por ele já me sufocava. O proibi de sair, ele aceitou sem discussão. Continuei com meus passeios, mas agora quando retornava ele me exigia o mesmo, que ficasse em casa, que eu não deveria ficar saindo a toda hora, que tinha compromissos com ele. Uma noite antes de nossa trágica separação ele me buscou em uma festa e quando voltou para casa me encheu de tapas e me deixou toda roxa, amarrou-me e transou comigo. Resolvi que alguma atitude eu tinha que tomar, eu o amava, mas ele me privava, sentia-me presa por dois lados.

No dia seguinte logo de manhã, antes que ele acordasse, cortei o cabo dos freios da sua moto. Voltei para a cama sem que ele percebesse minha ausência. Saiu duas horas depois para não voltar mais, e sua última imagem deve ter sido a da roda de caminhão, sinal de minha liberdade.

Voltei a fazer as minhas loucuras, se é que algum dia as deixei de fazer. Dizem que na maior das loucuras é que se encontra a verdadeira razão. Pois bem, talvez seja eu racional, e resolvi mudar. Até então, só o sexo masculino me atraía, mas certa vez antes de uma reuniãozinha entre amigos que terminaria em uma orgia, peguei-me olhando e desnudando uma mulher, sim uma mulher. Ficava imaginando as curvas de seu corpo, os seus seios, sua pele, seu bumbum. Fiquei excitada. Ela me olhou e acabamos na cama. Um prazer maravilhoso, e diferenciado. Foi morar comigo. A solidão às vezes também é ruim. Aprecio a liberdade, mas a solidão é um grito fantasmagórico que trazia à mente as pessoas que tirei de minha vida. Resolvi convidá-la a viver do meu lado.

Vivemos bem um ano, dois anos, três anos. Eu saía para minhas festas enquanto ela ficava a maior parte do tempo em casa. Transava com ela, transava também com homens. Ela começou a sentir ciúmes, eu presa. Eu a amava, porém a liberdade gritava em mim acima de tudo. Discutimos, ela virou as costas, peguei um bastão e uma pancada bastou para mandá-la para junto dos meus outros dois maridos. Não era necessário, mas a raiva acumulada durante a discussão me fez dar mais dez, quinze, vinte pauladas em sua cabeça, até que, o que assim chamávamos antes, se transformasse em uma massa indecifrável no chão da cozinha.

A sensação de liberdade tomou novamente conta de mim, mas já me senti sozinha. Limpo o chão do apartamento, limpo o bastão pensando que ainda quero tentar ser feliz com alguém sendo livre também. Acredito que não vou desistir. Ainda procurarei alguém que eu possa gostar e que possa entender o verdadeiro sentido da relação amor e liberdade, alguém que eu possa amar, que possa me amar, sem privar-me de me sentir livre. Na verdade, já estou à procura. Gostaria de tentar?

Luigi Ricciardi
Enviado por Luigi Ricciardi em 31/05/2009
Código do texto: T1624445
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