Sob controle



Perco-me dentro da minha própria consciência. Paguei para que me dissessem isso. Ao menos ele disse que em geral isso ocorre com todos. Jamais elevou seu tom de voz comigo. Era de uma candura irritante. Olhava-me com o semblante tranqüilo. Fitava-me como se quisesse me dizer que já tinha ouvido de tudo naquele consultório. E ele? O que fazia fora dali? Não seria interessante perguntar? Talvez não fizesse nenhuma diferença. Sempre encarei analistas como espelhos. Sempre achei que os manipulava de acordo com o que eu queria ouvir. Um dia vi que dependia daquilo. Vi que inventava situações extremas numa vida carente de euforia. Estava pela terapia. Pouco me importava com o resto. Demorei a perceber. Perceber-me.
 
O jogo foi me levando. Uma espécie de onda surfada com desenvoltura. Cem reais a consulta que eu trocava feliz pela chance de superá-lo. Costurava um personagem hermético. Desafiava-o a utilizar técnicas acadêmicas. Deslumbrava-me ao perceber que seu semblante mudara. Ouvia sobre nomes e correntes de pensamento. Passou a justificar suas opiniões. Embasava-as em expressões estrangeiras. Senti-me pleno quando me vi exceção.
 
O ritmo não poderia cair. O controle era meu, sempre havia sido meu. Eu imprimira a cadência e ganhava o jogo. Não foi pela ciência, isso passou a incomodar. De algum modo ele tinha me encontrado, havia, enfim, se estabilizado. Minha toada de rompantes havia sido substituída por vírgulas, inúmeras, infinitas, uma a uma, colocadas propositadamente, como barreiras, no meio de nós. Perguntas tolas, desnecessárias, retórica aparentemente despretensiosa que, finalmente, devolvia-lhe o controle. E os semblantes tranqüilos.
 
Não dava mais tempo. Ou ele ou eu. Envergado, não quebrado. Levantar como mantra. Expressões diretas. Força. Ultimo gás. Foi bom quando ele viu do que eu seria capaz. É estranho relembrar. Podem chamar de covardia. Acho o contrário. Acho exatamente o contrário. Poucos são os homens que saem da teoria à prática como saí. Não falávamos sobre limites? Não filosofamos sobre eles? Quais os seus limites? Está ouvindo? Doutor? Matar-lhe seria a parte fácil. Havia me decidido. Limites são moedas. Duas faces. Reconhece-se. Ou enfrenta-se. Enfrentaria. Minha dúvida era saber se o mataria com ou sem prazer. Dependia dele. Não podemos controlar tudo. Nem todos. Ajoelha! Deseja pedir alguma coisa? O que pensa que está fazendo? Acha que tem algum controle? Sem truques. Sem vírgulas. Sem pausas. Se pedir bem alto! Mas tem que ser alto! Não te mato. Peça! Doutor? Vai pedir? Quero ouvir. Não me mate. Vamos! Quero ouvir. Não me mate!
 
Quando puxei o cão vi uma lágrima cair. Senti algo bom. Arrepiei-me. Fui corajoso. Sou! Expressei-me mal. Sou corajoso. Ele chorou ajoelhado aos meus pés. Uma única lágrima. Pediu. Exatamente como mandei. Foi uma alternativa que lhe pareceu viável.
 
Mandei-lhe pro inferno. Com um tiro seco no meio dos dentes da frente. Perco-me dentro da minha própria consciência. Mas mesmo assim posso ter prazer. Havia provado. Mais que isso. Havia vencido. Sangue quente na ponta dos dedos. Gosto de ferro. Preciso pagar a consulta? Sim. Mas é claro. O controle é meu. Sigo as regras que quero. Vou pagar. Cem reais. Talvez você precise de grana no inferno.