Rotina

Olhando assim, pela janela da cozinha a vida parece bem restrita. A paisagem cabe num quadrado de um metro por um metro, o espaço, três por quatro. Nada além. Apenas a rotina de acordar, trabalhar, voltar, abrir a pequena janela e olhar o de sempre. É sempre o de sempre. Sem o glamour das novelas, sem o riso dos programas de auditório. A tela é quase em preto e branco já que conhece aquelas cores de cor, até os cachorros que passam são os mesmos, como um filme que se repete indefinidamente. Ás vezes chove e então o espaço fica menor. Resta apenas o entorno que de tanto saber é capaz de percorrer com os olhos fechados, sem tropeçar num banco, e olha que são muitos, embora bem pouco sente.

No começo até que gostava, tudo arrumado, tudo no lugar, as coisas funcionando como tinha que ser. Mas de um tempo prá cá começou a sentir uma certa inquietação, um ligeiro aperto no peito, uma ânsia, um desejo de saber fazer algo diferente, uma vontade de viver mais que uma tela de um por um num espaço de três por quatro. Mas era só ânsia, assim, sem nome, apenas aquele travo na garganta a exigir atitudes. Mas que atitudes, Santo Deus? Não estava a vida toda em ordem, as coisas acontecendo como tem que acontecer nesta altura da vida? Não teria já passado o tempo dos sobressaltos? Não seria agora o momento da doce contemplação, que nada exige e que de pouco se alimenta? É... Parecia fome. Não como se estivesse há dias sem alimentar-se, mas como quem, tendo se atrasado perdera a hora do almoço. Uma inquietação, uma ligeira insatisfação sem nome, apenas aquele desconforto a rondar-lhe as tripas. Queria ver mais, queria sentir mais, queria conhecer mais, mas nada que chegasse ao desatino, apenas o suficiente para deixar a existência insuficiente. Porém não atinava no que fazer. Por vezes perdia horas em planos mirabolantes, noutras imaginava um milhão de coisas simples que poderia fazer para tornar a vida melhor. Mas não fazia nada, não movia um dedo. Planejava cursos, viagens, passeios, leituras, bordados... Mas não arredava um milímetro da pequena tela, do exíguo espaço. Não é que não tivesse idéias. Tinha. E às vezes até que pareciam bem interessantes, ficava horas e horas imaginando os mínimos detalhes, locais, pessoas, situações e reações. Ás vezes chegava a acreditar que algo tinha acontecido, tamanha a intensidade da divagação. Mas quando via, acordava... E a tela permanecia ali, exatamente com a mesma paisagem.

Ás vezes se sentia um balão, queria explodir. Porém não era um explodir de fim do mundo, pelo contrário, um explodir de extravasar, de tornar-se o que realmente era. Todavia, o que era realmente? Nos últimos tempos não era muito, sentia-se tão restrita quanto seu espaço, tão escassa quanto a janela em frente à pia da cozinha. No entanto pressentia que havia algo mais , por isso os sonhos, os devaneios, aquela fomezinha de almoço que se perde...

Contudo continuava a lavar a louça de sempre, na pia de sempre, diante da janela de sempre a mirar a paisagem que nunca mudava. Por fim foi perdendo a noção de tempo e espaço. Para que contar a s horas se elas eram sempre iguais? Porque olhar em torno se o espaço era exíguo e se conhecia cada móvel do lugar. Com o tempo, os olhos pararam de ver, ouvidos pararam de ouvir, as pernas não moveram-se mais do tapete em frente a pia. E assim foi sem surpresa que um dia percebeu que as mãos haviam se tornado esponjas que vertiam uma espuma branca e inodora a polir pratos e panelas que nunca deixavam de brotar da pia.