Não viu mais nada

Entregou as costas, o corpo inteiro ao espaldar da cadeira. Um gesto que costumava fazer quando entrava sem fôlego, sem gosto. Na sala enorme, a luz fraca do abajur mal permitia ver a silhueta dos objetos, móveis, quadros e tudo que ia sendo acomodado ali. As pernas latejavam (há muito vinha sentindo aquele peso); espichou-as sobre o assento de uma outra cadeira, arrastada com certo esforço. Respirou fundo. Uma opressão sobre o peito. Um gosto de sangue na boca. Seria stress tudo aquilo? Veio à mente a viagem, cansativa até, mas com bons resultados. Lembrou-se da cachorra. Por que foi morrer bem quando não tinha ninguém? Vivera tantos anos ali e agora morria sozinha, sem alguém por perto? Mas... pobre!... acaso teria outra escolha? Fora meiga, doce, até em sua última hora... morreu sem incomodar. É... é bem assim. Respirou fundo de novo. Se morresse ali também não haveria do que se queixar, afinal sempre pensou que deveria morrer depois da 'cã'. Parou um pouco; tentou se refazer. Suspirou longamente. Não tinha muito pra chorar... afinal os últimos dias tinham sido de lágrimas... e quantas! E como era difícil achar espaço para o próprio choro... porta, telefone, interfone, atende esse, fala com aquele... quantas vezes tinha mesmo que trancar tudo na garganta... Era assim. Um mundo muito louco mesmo... apressado demais. Quanto ainda teria de esperar até que tudo melhorasse? No silêncio daquele ambiente, passou por um sono. Até sonhou, apesar de toda a tragédia que ultimamente vinha se abatendo sobre sua vida. Estava nisso quando o cão latiu (desde que lhe morrera a mãe, ele vinha se mantendo quieto, enroscado, recolhido no seu canto... estranhos os animais...) e em seguida a porta abriu. Dois guris bem na sua frente: nas mãos as armas apontadas em sua direção. Não viu mais nada.

lilu
Enviado por lilu em 16/06/2009
Reeditado em 04/10/2009
Código do texto: T1652296