MONA

Mona morreu hoje.

Está um dia bonito de sol, como ela queria tanto. Ela dizia que temia morrer num dia de chuva, seu caixão sendo levado por pouquíssimas pessoas vestidas de sobretudos pretos, gente calada e sisuda, a chuva caindo torrencialmente, impedindo aquela verdadeira procissão que certamente ocorreria se morresse em dia ensolarado. Ela assistia enterros nos filmes de Hollywood. Quase sempre chorava quando começava aquela música da gaita de foles, com o homem de kilt entrando no cemitério, saindo de trás das árvores.

Mona morreu.

Vestia-se com extravagância e estava sempre pronta para armar um barraco. Andava armada: estiletes prontos para o corte fatal. Mas nunca os utilizara, mesmo quando espancada, roubada, agredida. Na verdade, falava, falava, mas não fazia o que ameaçava fazer. Mona levou Valda para conhecer o bordel de Polaca, ainda menina, assustada, sem ter para onde ir na cidade grande. Mona conversou com Polaca, que estava meio desconfiada. Mona ajeitou tudo e depois Valda ficou muito agradecida. Viam-se pouco. O trabalho de Mona era na orla marítima, tentando atrair clientes de carro, disputando com outros homossexuais o dinheiro verdinho dos gringos.

Depois Mona foi para a Espanha, Itália, Alemanha. Estava parecendo cada vez mais com uma mulher. Seios, nádegas redondas, voz fina, jeitos femininos. É o milagre da medicina, dizia entusiasmada. Aí surgiu o convite de um espanhol. Ela viajou de avião e disse que tremeu o tempo inteiro, com medo daquele bicho de metal cair no mar. Na Europa, estava ganhando dinheiro. Antes eram pesos, marcos e. Agora, recebia em euros, a nova moeda. Alguns pagavam em dólar. Sou apaixonada pelas verdinhas, dizia.

Vestia roupas caras, usava jóias compradas em Londres, mandava buscar sapatos até na Rússia, se gostasse. Inclusive conhecera os Alpes suíços. Contava essas coisas como se fossem banalidades.

A morte foi acompanhada de longos meses de sofrimento. Mona chegou um dia dizendo que cansara da Europa e precisava descansar. O namorado holandês a deixara por um rapazinho mexicano. Ela juntou o pouco dinheiro que amealhara e retornou ao Brasil.

Alugou um apartamento num flat na Barra.

Valda foi visitá-la.

“Valda, como você está linda!” Mona foi dizendo. “O tempo não significa nada para você.”

Valda ria. Achava engraçado aquele jeito espalhafatoso dos gays, como se estivessem encenando uma peça de teatro amador.

“Enjoou da Europa, Mona?”

“Cansei. Depois, o meu namorado me deixou por um moleque sem corpo, sem nada. Quem vai entender os homens?”

“Pois é. Eu não entendo nem confio”, disse Valda, que ainda não conhecera Heleninho. “Os homens são uns loucos”, aduziu, pensando no pai, no coronel, no major Leopoldo que vivia a persegui-la com convites de casamento, dizendo que queria tirá-la daquela vida. Dava apartamento, dava tudo que ela quisesse.

“E você, como está?”

Enquanto conversavam, Mona mostrava fotos da Europa, indicava detalhes, revirava os olhos. Luxo, amiga. Você arrasaria por lá.

“Deus me livre”, disse Valda, se benzendo.

“No começo a gente fica com medo. Língua diferente, costumes diferentes. Depois a gente acostuma.”

O enterro de Mona foi num dia de sol, um sol bonito, brilhando no céu, às 4h da tarde. Sem dinheiro, sem bens, Mona foi enterrada no Cemitério da Baixa de Quintas. Colocaram o corpo dela numa gaveta alta e lacraram com massa de cimento.

Menos de vinte pessoas acompanharam o cortejo, da capela para o túmulo.

Não houve pompa. Nem luxo.

Mona morreu sobre uma cama de hospital, isolada, pois havia contraído AIDS. Ela sabia-o desde que chegara. Não foi ao médico. Inicialmente ficou tomando medicamentos para gripe, foi emagrecendo, isolando-se, não queria falar com ninguém. Valda e Cibele levaram-na para o hospital quando ela não queria mais comer, estava completamente debilitada na cama. Os parentes foram avisados. Vieram uma vez e sumiram para sempre. Sequer apareceram no enterro.

Valda chorou muito no dia em que Mona, encolhida no leito, magérrima, lhe disse que estava morrendo e que estava com muito medo, pois não sabia se morrer doía.

Naqueles dias, Valda levava a biblinha dos Gideões que ganhara do comissário Édson e pedia que Cibele lesse para Mona. Cibele ficava lendo os Salmos, meio sem jeito. Cibele não acreditava na Bíblia. Mona fechava os olhos e ouvia, ávida.

Todos os dias ao acordar, Mona era maquiada por Valda.

“Não quero morrer como uma bruxa.”

Segundo a médica, Mona estava com pneumonia e um câncer. O vírus avassalava o corpo frágil do travesti, matando os anticorpos e abrindo passagem para todas as doenças possíveis.

“Valda, quero te contar uma coisa”, disse Mona alguns dias antes de entrar em coma.

“Fale”.

“Sabe como é meu nome?”

“Claro. Mona.”

“Não. Mona é nome de guerra. Nome de trabalho. Meu nome de verdade é Ronilson.”

Valda começou a rir.

“É engraçado, não é? Ronilson.”

Numa quarta-feira Mona entrou em coma.

Dois dias se passaram e o pessoal do hospital telefonou para Valda avisando que o Sr. Ronilson acabara de falecer. Valda não continha o choro, trancada em seu quarto.

Hoje foi o enterro de Mona.

Tinha sol, mas não tinha quase ninguém. Só gente pobre chorando seus mortos, espalhada pelo cemitério. Nenhum agente funerário de sobretudo preto, nenhum tocador de gaita de foles com kilt xadrez, nenhum pastor ou padre fazendo as rezas de praxe.

Valda acha que Mona não sentiu a dor da morte devido ao estado de coma. Valda nunca disse, mas também tem medo da dor da morte.

Edilson Paulo
Enviado por Edilson Paulo em 18/06/2009
Código do texto: T1654447
Classificação de conteúdo: seguro