Palavras cruzadas


Paredes verdes. Verde bem clarinho até a metade, onde um barrado de gesso dividia duas partes em duas cores. A outra era bege. Uma gravura de Modigliani, em tons pastéis, ao lado do aparelho de televisão, ligado sem som num canal que transmitia desenhos animados.

Junto à cama, onde ele já estava há três anos, toda a parafernália da empresa que prestava serviços de atendimento médico em domicílio: tanque de oxigênio, hastes metalizadas contando gotas de soro, moderno equipamento que media pulsação, pressão arterial e temperatura do corpo.

Já era a quarta enfermeira, desta vez uma senhora mais discreta do que as demais. Fazia as unhas e completava lacunas no caderno de palavras cruzadas que carregava junto aos seus pertences. Chovia em Copacabana e a grande dúvida que tomava conta do quarto de fundos era capital de Malta com seis letras. Resistia em consultar a cola na última página quando ouviu passos no corredor.

Ela abriu a porta de súbito num horário incomum. Alisou-lhe os vigorosos cabelos negros que ainda brilhavam e fitou-lhe fundo em seus olhos verdes de tonalidade próxima à da tinta que cobria a parede. Segurou lágrimas que nitidamente lhe cobririam o belo rosto e, já sentada no pequeno banco de madeira ao lado da cama, passou a acariciar-lhe a palma da mão.

- Será que ele reconhece a senhora?
- Não tenho dúvidas de que reconhece.
- Ele é um homem tão bonito. A senhora é uma pessoa de sorte.
- Você tem família? Marido, filhos, essas coisas?
- Meu marido me deixou há dois anos.
- Que pena. Desculpe-me, não sabia.
- Não é nada. Não é nada perto do que a senhora passa.
- O que está escrevendo?
- Palavras cruzadas. Mas dessa vez comprei uma muito difícil.
- Ele gostava muito de palavras cruzadas. Posso ajudar?
- Capital de Malta. Seis letras.
- Difícil.
- Falta essa. Essa e mais uma sobre futebol.
- Sobre futebol não posso te ajudar. Não sei nada... Bem, preciso ir. Passei aqui num horário muito complicado. Lá pelas sete estou de volta e você poderá ir, tá bem?
- Pode deixar. Eu cuido dele como se fosse da família.
- Sobrou algum doce na geladeira. Manjar. Tá bem gostoso. Pode pegar, fique à vontade.

- Valeta.

Olharam-se. E de novo, daquela vez com mais força:

- Valeta, capital de Malta.