Conto Portuário

Ela vinha sempre à mesma hora. Sentava-se a um canto da sala, no lugar de sempre, num lugar esvaído na penumbra. Pedia o café com a doce delicadeza de uma voz suave e firme. Não parecia perturbar-se com qualquer ruído, com a presença dos outros ou de ninguém. Não parecia perturbar-se com nada. Levantava os olhos mais para sentir olhar do que para olhar a realidade que a envolvia. Estava no seu mundo, observando o interior do seu mundo e isso era tudo. Talvez. Por vezes, ouvi-a cantar, cantava para se embalar, silenciosamente, com os lábios quase cerrados que eu não parava de fixar. Ela permanecia imóvel muito tempo. Muito tempo eu permanecia quase imóvel a imaginá-la, a recriá-la como personagem da minha ficção. Observava-a na sua totalidade, sem me preocupar com pormenores. Excepto os lábios trémulos da tal música sem fim. A partir dos lábios construí o seu perfil. O rosto invocava-me uma figura renascentista, uma tela de Botticelli, não sei. Não era loira, não tinha cabelos anelados, nem um ar angelical. Não era um anjo, uma deusa grega, era uma mulher real, ali, em frente ao meu olhar, num café qualquer, um bar decadente aonde eu ia para me sentir vivo. Próximo do porto de mar. Guindastes erguidos para o céu. Armazéns enegrecidos de fuligem. E os faróis e as hélices e os estivadores com o peso descomunal sobre os ombros. Os navios no mar, tão banal os navios no mar, o mar tão banal entrando pelo porto até ao poço das docas de cheiro a ferrugem e sal. O som de partida dos que não voltam, o arco da ponte abrindo aos que voltam para cumprir um destino. A magnitude da solidão quando o poente se aproxima e os candeeiros debitam outra vez a luz mortiça pela noite. E regressam as prostitutas ao empedrado das ruas, passam essas mulheres de uma beleza ancestral, as vejo numa dignidade inconfundível e quase choro pelo poema que não lhes sei dedicar. Ela ali estava, chegava sempre à hora certa, vestida de negro, sentava-se a um canto da sala, cantava uma canção infinita para se embalar, para me embalar, os lábios trémulos de um vermelho baço, os lábios admiráveis, unidos e desunidos ao ritmo das notas que tocavam o infinito. Eu parecia já conhecer essa música e levava-a comigo no silêncio, levava-a comigo ao interior do meu mundo, levava-a, levava-a até à fina camada de um sonho possível. Os seus lábios eram os meus lábios que cantavam e ficava assim enquanto ela desaparecia ao fundo do dia para sempre na noite. Levava-a. Sabia que na próxima tarde ela estaria neste lugar, a pose esfíngica ocultada na penumbra de um café de gente anónima. Gente que falava, possivelmente, de esperança. Ela saía e eu ficava na melancolia de um lugar vazio. Desaparecia ao fundo do dia, do outro lado dos vidros prendia a atenção no último reflexo de uma imagem. Para além dos lábios, de um vermelho baço. Voltarei a olhar os teus olhos, líquidos, a água dos teus olhos, o branco cristalino da pele por onde correm os cabelos lisos numa álea de luz. O rosto. Levo-te. Com a névoa pelas avenidas da cidade portuária, ao som da respiração do vento tardio, como um eco ancorado sob a flora das veias. Nada dizia para mim, a tua música. Nada mais ver por um instante, nada mais na fulgurância da noite onde tudo se dilui nas múltiplas sombras distantes.