vazio interior

Pequenas gotas de orvalho se formavam sobre as plantas e a superfície. O dia nascia como todos os outros, mas hoje era diferente. Era seu aniversário.

Acordou, mas quedou-se na cama por preguiça, ou por sono apenas. E na confusão daquela consciência brumosa, começou a refletir sobre nada e sobre todas as coisas. Hoje era seu aniversário, mais um ano de vida, mais um passo pra morte. Mais um ano de experiência, menos um ano de vida à seus neurônios.

O que havia feito de importante até agora? Nada que merecesse muita atenção, nada que fizesse bem a outrem, porém nada que fizesse mal. Sua vida era uma nulidade.

Com certa má vontade, virou-se para o canto da cama que dava para a parede. Respirou o ar frio que vinha dali, e tapou a cabeça buscando a mornidão que vinha de seu corpo aquecido pelas cobertas.

Era um nada. Nunca fez nada, não sabia nada, nunca ensinou nada, nunca amou alguém, nunca fez alguém feliz. Pensou: -- Se eu morrer ninguém dará falta, nem mesmo os vizinhos notarão a minha ausência.

Levantou-se, percorreu o quarto e dirigiu-se ao lavabo, para a primeira higiene do dia e a última de sua vida. Abriu a torneira, e a água que vinha dela era tão fria que gelava a alma. Quedou-se com os punhos embaixo dela, sentindo a água congelante a tocar-lhe a pele. Lavou o rosto, e num gesto rápido apanhou a toalha e o secou.

Saiu do banheiro com a sensação da água fria ainda a tocar-lhe os pulsos. Sentia um vazio tão grande dentro de si, que nem mesmo todo o amor do mundo saberia preencher. Talvez agora era o momento de dar adeus.

Dirigiu-se ao roupeiro, e apanhou uma caixa verde-musgo, forrada com um veludo macio, e de dentro dela tirou um revólver antigo, com cabo de madeira, e observou-o. Seus dois canos aparentavam sinais de ferrugem, pois a arma possuia mais do que trinta anos. Aquela garrucha havia pertencido ao seu avô, que em tempos de guerra a mantinha sobre o travesseiro durante seu sono sobressaltado pelos tiros de canhões.

Verificou a munição, haviam três balas ainda. Pôs a caixa de lado, ainda segurando a arma nas mãos, com o mesmo cuidado que teria ao segurar um recém-nascido ou uma melancia. Nunca teve jeito para segurar as coisas, sempre as derrubava, assim como uma vez em que sua mãe lhe deu uma caixa de ovos para levar à casa de sua avó, do outro lado da rua, e acabou por derrubá-los, quebrando todos, sem exceção. Ao lembrar disso, uma pontinha de nostalgia lhe tocou a alma, mas não dissuadiu-se do seu futuro feito.

Suavemente, levantou a mão e deixou os canos da arma tocarem-lhe os cabelos, assim como que um carinho frio de um objeto sem vida, ou como aqueles que sua mãe lhe dava a contragosto, pois não era dada a essas coisas de carinho. Dizia que isso só mimava as crianças.

Por um momento teve vontade de desistir. Sentiu medo da dor e medo do escuro. Deixou a garrucha descer até o pescoço, no limite do ombro. Passou-a levente até o peito, postando bem ao centro do que supunha ser a localização de seu coração.

O estampido soou por toda a casa. Em seu corpo, sentiu o calor do sangue a escorrer-lhe no peito, e via o vermelho tomar conta da alvura de seus lençóis. O calor aumentava e seus olhos iam cerrando lentamente, e lentamente as coisas iam perdendo sua forma e sua cor. Não sentia dor. Apenas aquele calor estranho no peito. Quedou-se lentamente sobre a cama, e, deitando em posição fetal, pensou que a vida não era nada. Descobriu que não existia Deus, que deuses somos nós que tiramos a vida dos outros ou a nossa própria quando bem entendemos. E descobriu que não existe inferno nem paraíso, só o sono eterno ao qual estava adentrando. Descobriu também, que a morte é o ponto final, que não existe nada depois dela a não ser o vazio.

E sentiu-se feliz, pois descobriu que o oco do seu coração tinha razão de ser: carregava no peito a sua vida inteira o vazio da morte sem o saber.

Mariana Villa Real
Enviado por Mariana Villa Real em 05/06/2006
Reeditado em 30/06/2006
Código do texto: T169602
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