O ATEU QUE ACREDITAVA EM SANTOS

Chamava-se Agenor e tinha de seu apenas um barraco de quarto e cozinha, um pobre e esquálido cavalo e o dom de esculpir em madeira os mais bonitos santos da região. Mulher, ele diz que botou pra correr há um tempão, quando chegou mais cedo da repartição que trabalhava e a encontrou na cama, celebrando por completo o segundo mandamento com o vizinho da direita. Sempre desconfie do vizinho da direita, é um potencial alcoviteiro de mulher casada.

Apesar de ateu de nascença, Agenor era católico de profissão. Vivia à custa dos santos da Igreja. Fez até amizade e sociedade com o Padre Romualdo, que lhe deu exclusividade para montar a sua barraquinha de santos na porta da Igreja. Era o santeiro oficial da Casa do Senhor.

- É um missionário, um enviado de Deus - abonava Padre Romualdo.

Em troca, além da lealdade, Agenor destinava dez por cento das vendas para o padre. Dinheiro extra-oficial, que ia para o bolso do padre. Tudo honestamente, o religioso lhe fiava. É um trabalho, um bico do Romualdo cidadão, que o homem à paisana está fazendo, dizia.

- Eu arranjo algum e fico mais feliz, você fica mais endinheirado, respeitado e feliz. E Deus, também não há de ficar triste com seus filhos se dando bem.

Foi o padre Romualdo que lhe assentou o apelido de Santeiro como sobrenome. Agenor Santeiro ficava melhor para o negócio, inspirava mais credibilidade. O religioso lhe fornecia também informações e características funcionais dos santos. Santo Antônio, arranjador de casamento. São Cristóvão, protetor dos caminhoneiros. São Benedito, dos negros. Santa Rita de Cássia, das causas impossíveis. O padre tratou de providenciar um calendário com a data de todos os santos para Agenor Santeiro.

- Todo profissional precisa de um assessor - justificava.

Um dia, padre Romualdo lhe presenteou com uma Bíblia. Era para dar sorte. Agenor, mesmo sem nenhuma crença, a abria no Salmo 23 e deixava no armário, em meio aos discos de Luis Gonzaga, o rei do baião.

- Não pega bem um santeiro não ter uma Bíblia, onde já se viu?

- Se não trouxer sorte, agouro não há de trazer, não é mesmo, doutor pastor de almas? - Agenor tinha o dom do sarcasmo.

- Não brinca homem de Deus! Com a santa palavra não se diz isso!

- Sossegue padre! Saberei me portar como um bom católico-engole-hóstia. Serei um lobo vegetariano entre suas amadas ovelhas. E antes que saia, não sou homem de Deus coisa nenhuma, sou homem dos Santos. Vou até beber a saúde deles hoje. Homem dos Santos, de dependesse de Deus, morreria de fome...

- Rapaz!

- Morreria sim. Ai de mim se não fossem esses santinhos me acudindo... Bem aventurados sejam!

O padre resolve ganhar terreno, fazendo uso de sua teologia diante da pouca instrução das escrituras do santeiro.

- Pois saiba seu Agenor, que foi Deus quem lhe deu o dom de saber fazer esses santos. Na verdade, fez também os santos. Você é apenas um mensageiro dele - regozijou-se com eloqüência.

Depois de uma cuspida no chão batido e de soltar uma gargalhada bem caipira, Agenor pegou um santo inacabado e colocou sobre a mesa de trabalho.

- Esse aqui, por exemplo, São Sebastião, eita santinho que sofreu coitado. Não há um só dia que não choro por seu martírio. Toda vez que vou beber uma cachacinha, a do santo é com ele que partilho. Pense num santo bom de copo...

- Está em vias de blasfêmia, seu santeiro duma figa!

- Que blasfêmia, que nada! E seu eu blasfemar, o que me sucede? Seu Deus vai me proibir de fazer santos? Se proibir, pior pra Ele, vou fazer santos do diabo, bonecos de vodu, imagens do Buda, passar fome é que não vou!

- Se blasfemar - enérgico desta vez - se blasfemar, vai para o inferno. Não há confessionário que dê jeito. Nem o papa intercedendo por você, tem volta não.

Agenor Santeiro, enquanto o padre explica sobre seu triste fim na eternidade pega uma garrafa de vinho, dois copos na mesa e brada:

- Um brinde, proponho um brinde!

- A quê, seu blasfemo? - O padre já tinha amolecido seu grande coração. Era importante manter o sócio.

- À nossa amizade nesta vida. Aos negócios, à comunhão das trevas com a luz!

O padre ria quase que achando graça.

- Você não tem jeito mesmo!

- Um brinde a Deus, aos santos!

- Um brinde - consentiu o padre.

- E ao diabo.

- Ao diabo não, se não mudar vai acabar é no inferno, seu blasfemador barato - o padre já recolhia seu chapéu, para ir embora, sem muito apreço pelo vinho sobre a mesa.

- O inferno é muito quente. Vou para o céu, padre, junto com você.

- Para o céu que eu conheço, não!

- Não sabia que vossa santidade conhecia o céu!

- Paciência!

- Pode ficar sossegado, padre, é outro céu. Ou acha que Deus não seria generoso o suficiente para fazer um céu para os ateus?

O padre saiu, com muita ira, cuspindo já as cóleras do Juízo Final.

- Vai com Deus, padre!

- Amém. Fique o diabo, seu Agenor!

- Prefiro ficar com os santos.

Depois desse quase duelo, Agenor Santeiro resolveu provocar o padre. Não para ofendê-lo, nutria grande apreço pelo amigo. Apenas se divertia com essa situação, que para ele era como uma discussão sobre plantação de quiabos ou política local. Agenor esculpiu uma santa diferente, que não existia no calendário celestial, uma santa terrena, canonizada por suas ferramentas e sua necessidade de pôr feijão na mesa.

- Santa Miréia - disse consigo - protetora, deixa ver, dos cavalos. Isso! A santa protetora dos cavalos, função importante por aqui.

Fez três exemplares e foi para a sua barraca na porta da Igreja. Uma beata parou e parece ter se engraçado com a nova santa.

- Olha irmã, é santa nova, foi eleita há pouco tempo pelo Vaticano, é boa que é uma beleza. A senhora tem cavalo em casa, não tem?

- Tenho - disse titubeante e sem muita compreensão.

- Pois então, Deus fez a senhora passar aqui pra isso! Pronto. Leva essa, Santa Miréia, é tiro e queda. Eu garanto. Moisés, meu cavalo é prova disso, esta aí que não me deixa mentir. Estava à beira da morte, o infeliz. Rezei para Santa Miréia e o bicho levantou na hora, disposto, um raio de animal! Ela é boa mesmo, é uma das melhores santas do mercado, na capital é uma celebridade.

- Sei não, mas não é Santo Francisco de Assis, o protetor dos animais?

- Está por fora, irmã. Era. Isso no tempo que o morro da Espinhela era cupim, agora há um santo para cada animal. Santo Francisco agora foi promovido a gerente-geral, comanda os santos dos animais. Mas ficou importante o homem, não mexe uma palha por um bicho sequer, tem funcionários por conta!

Mesmo com todo esse esforço, a beata não estava por total convencida.

- Diz pra mim, dona Paulina, eu servo de Deus, alguma vez já menti pra senhora? Já lhe vendi um santo com defeito? Quantos santos já lhe vendi?

- Quatro.

- E algum deles empacou? Não atendeu uma graça?

- Não, nenhum, seus santos são mesmos bons.

- Então! Essa aqui é ainda melhor, vai dizer que nunca quis uma santa mulher, que vai olhar com mais cuidado pela senhora? Hein, dona Paulina?

Vaidosa, a beata estava a um passo adquirir a milagreira eqüina. Agenor deu o tiro de misericórdia?

- Dizem que o papa é devoto dela.

Não tardou uma semana para que Agenor Santeiro vendesse seus três exemplares da nova santa e ter levado para casa uma lista de encomendas. Espalhou na cidadezinha que a santa era mesmo porreta, não deixava um cavalo de crista caída. Nunca aconteceram tantos milagres em Moqueca do Vale.

- Que terra abençoada, quantos cavalos! - Gabava o artista da fé alheia.

A notícia correu a cidade, todo mundo queria uma Santa Miréia, madrinha dos cavalos, amiga dos carroceiros. Diziam até que conversava com cavalos numa região da Itália, onde viveu.

- Que santa boa por demais da conta!

O padre não estava muito satisfeito com a fama da nova santa, ainda por cima, seu bolso não havia presenciado o milagre dos dez por cento.

- Isso não está certo, não! Agenor, você já passou dos limites com as coisas de Deus. Como pode ter inventado uma santa e sair vendendo pra todo mundo sem o consentimento do Vaticano?

- Padre, só sei que nessa o senhor não ganha comissão, porque é extra-catálogo, é obra minha. Veio me dar os parabéns? Declarar-me cônego? Acho que vou é me candidatar a papa, estou me saindo melhor do que ele para inventar santo.

- Herege! E quem disse que é o papa que faz santos?

- E não é? Quem faz então?

Com um gesto em direção ao céu, o padre parafraseia Jesus Cristo em seus momentos finais.

- Pai, perdoa esse homem, ele não sabe o que faz!

Agenor bateu palmas, ironicamente.

- É só um aviso, Santeiro, quero que pare imediatamente com essa palhaçada. Inventar santo, onde já se viu?

- Dá na mesma, padre, fazer os já inventados ou fazer inventando. A diferença é apenas artística.

- Hoje mesmo o bispo vai ficar ciente que há um herege aqui na Paróquia, maculando a imagem dos santos da casa do Senhor.

- Padre, só lhe peço uma coisa, não conte a ele que você ganha dez por cento no negócio. Ele pode me excomungar por ser tão mal pagador.

- Herege!

Além dos homens de batina, a classe política da cidade ficou sabendo da polêmica. O prefeito, que mandava na região e tinha planos de candidatar seu filho como sucessor, resolveu ajudar o pobre santeiro. Antes da chegada do bispo à cidade, o prefeito que nutria uma amizade muito bonita com o bispo, resolveu invocar o generoso coração do religioso.

- Estava pensando em contribuir com uma reforma para a Paróquia, senhor bispo, mas estou achando meio difícil agora.

- Qual o quê? O que te impede homem? Deixa Deus te usar, ora essa.

- Padre Romualdo não é exatamente um homem amigo do progresso bispo, vê o senhor, deu para implicar com tudo, até com um popular artista fazedor de santo. Um amigo de todo mundo e de Deus, um legítimo cristão.

Já entendendo os intentos do prefeito, o bispo que iria na cidade exatamente para resolver a situação a favor do padre, escorraçando o mercador de imagens da frente do templo, ficou numa encruzilhada. Não podia perder o amigo, e ainda por cima, a Igreja precisa de reformas e quem somos nós para impedir corações voltados a Deus de praticar a caridade.

- O senhor é um homem muito piedoso, prefeito. Admiro como cuida de seu povo. Vim aqui exatamente para saber se está de acordo com a transferência do Padre Romualdo para o povoado, já está aqui há muito tempo. O povo gosta de mudança.

Depois de mais alguns cafés, elogios carinhosos e comentários sobre a Igreja e a Prefeitura, os homens despediram-se afetuosamente.

Padre Romualdo foi tomar de conta das ovelhas do povoado, sedentas por um pastor. Agenor Santeiro estava muito ocupado, afinal não parava de chegar encomendas da Santa Miréia e de homens do prefeito em sua casa. Estão tentando convencer o humilde fazedor de santos a sair candidato na próxima eleição. O padre novo já garantiu que vai lhe prestar uma assessoria. Todo político precisa de alguém por trás. Extra-oficial, claro. Agenor Santeiro já está apreciando a amizade do novo pastor. Lhe parecia um sócio mais honesto.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 13/07/2009
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