Um sopro de Vida

Era só mais uma porção de terra seca de solo rachado encravada no sertão potiguar. Um cenário mórbido formado pelas silhuetas esguias dos cactos que despontavam por entre pedras pontiagudas manchadas por negras mortalhas de folhas desidratadas de jurema e algaroba, vítimas da ação cruel da longa estiagem. Ao fundo, a negritude sombria da serra castigada pelas intempéries, compunha essa paisagem sepulcral de miséria e desesperança.

A carcaça de uma rês abatida pela sede se desintegrava sob o sol abrasador, saciando a fome de aves de rapina e germes vorazes. O vento quente soprava forte, fazendo flutuar a poeira desértica, representando o balé macabro estrelado pelas partículas microscópicas da atmosfera que se juntavam na construção parcial de uma cortina nebulosa, tencionando ocultar mazelas e sofrimentos comuns àquela região.

No centro desse cenário inóspito e devastador destacavam-se as formas irregulares de um casebre construído com varas de angico envolvidas em barro batido e coberto com folhas de carnaúba, por cujas frestas, penetravam tímidos raios de luz solar, sugerindo a existência de um sopro de vida. Mobiliário composto de um pote de barro tampado com um pano amarelado; um caneco de ágata já bem marcado pelo tempo; uma cama de varas sob um colchão de capim seco; três tamboretes de couro de boi e, sobre o fogo de lenha feito no terreiro, algumas latas enegrecidas pela tisna constituíam as panelas em que se coziam o feijão, a batata e a caça que se tinha por alimento.

Esse lugar pequeno e desprovido de qualquer tipo de conforto era o de lar de "Seu Quincas" e "Dona Zélia. Casados há oito anos, sonhavam extrair daquele torrão árido, quase estéril, um futuro digno para a sua família.

"Seu Quincas" - sertanejo convicto, preso às raízes culturais de sua terra e de sua gente - trazia no rosto as marcas profundas do sofrimento. Ano após ano, assistia impotente à frustração de suas colheitas pela ausência de chuvas, ameaçando a própria subsistência.Viu morrer de sede a única rês que conseguira comprar e de onde obtinha o leite para o sustento. Nada lhe abatia o ânimo. A fé inabalável fazia manter viva a esperança de prosperidade.

"Dona Zélia", grávida de sete meses, não era dada a lamentações. O seu estado inspirava cuidados especiais. Magra e anêmica pela falta de alimentação e assistência médica adequada, não se curvava aos risco que a maternidade lhe impunha naquelas condições. Apesar da seca vir castigando duramente a sua região, subtraindo-lhe a disponibilidade de qualquer tipo de recursos, aguardava com ansiedade a chegada do seu primogênito para consolidar a felicidade do casal. enquanto ajudava ao marido em suas tarefas

- Deus proverá! Sempre dizia, acreditando que a providência divina não lhe faltaria.

"Seu Quincas" sonhava com um filho varão com quem pudesse contar na lida da terra para produzir mais e melhor em benefício dos seus. Quem sabe ele poderia até estudar, conhecer as letras e aprender música. É! Poderia até ser um repentista ou um violeiro com um programa de cantoria na rádio difusora local.

"Dona Zélia", por sua vez, sonhava com uma menina e já materializava a sua imagem em belos vestidos estampados de chita e dourados nos cabelos que ostentavam um laço fita vermelha para alegrar as suas tardes de domingo. Seria maravilhoso! Quem sabe não pudesse ser uma excelente quituteira? Ou até mesmo uma professora? Estava nas mãos de Deus.

Entre sonhos o tempo foi passando. É chegado o tão esperado dia. "Dona Zélia apavora-se ao sentir as primeiras contrações. Sim, é o sinal! As contrações se tornam menos pausadas. É o sinal! Exclama com um misto de medo e felicidade:

- Quincas, vá buscar a parteira! Estou sentindo os sinais, nosso filho vai nascer!

"Seu Quincas" põe o pé na estrada. Passo firme, apressado e decidido. "Dona Zélia" não pode esperar muito tempo, afinal está muito fraca. Tem que correr o mais rápido possível até o sítio do "compadre Joca" para chamar "Dona Sinhazinha", a parteira mais hábil e experiente das redondezas. Por suas mãos nasceram quase todas as crianças dali, inclusive ele e a esposa.

Enquanto corria desesperado, "Seu Quincas" tecia sonhos, tentando antecipar as alegrias que o futuro parecia lhe reservar. Um filho para dar continuidade a sua luta. Para brincar, trabalhar e crescer ao seu lado. A felicidade transparecia em cada gesto ou olhar.

Por fim avista a casa do compadre e de longa distância já vai anunciando:

- compadre, chame a "Sinhazinha", meu filho vai nascer! Imediatamente a parteira se apronta e seguem os dois apressadamente pelas veredas, para prestarem a assistência de que "Dona Zélia" tanto necessita nesse momento.

Nas proximidades da casa escutaram o choro distante e abafado de uma criança, quando "Seu Quincas" correu desesperado e invadiu a sua residência. Deparou-se então com a mais terrível cena que jamais imaginara: sobre a cama de varas ensaguentada "Dona Zélia" jazia desfalecida e pálida, tendo ao seu lado o filho recém nascido com o cordão umbilical envolto no pescoço. Foi seu último suspiro. Ambos estavam mortos. "Dona Zélia" tinha um sorriso nos lábios, lembrando os poucos instantes de felicidade que experimentara. Mas estava morta com o seu bebê.

"Seu Quincas" assistiu a sua vida desmoronar por completo naquele momento. Por que, meu Deus? Indagando repetidamente, liberou toda a sua ira e desencanto, blasfemando contra Deus por sua desgraça. Não poderia aceitar tanto infortúnio. Perdera tudo que havia construído, inclusive os seus sonhos. Como viver sem eles? Como achar um novo alento para a vida? Tomado pela emoção empunhou sua faca peixeira e, desferindo vários golpes contra o próprio peito, quedou-se sobre os corpos da mulher e do filho. Morreram todos abraçados, quem sabe tentando buscar na eternidade a real felicidade que a vida lhes negara.

Restam três cruzes a compor aquele cenário fantasmagórico que hoje se faz mais lúgubre e tristonho. São testemunhas das desventuras sofridas por quem logrou desfrutar tão somente de um sopro de vida marcado por tantas desventuras.Que descansem em paz. Amém.

FIM

Heliodoro Morais
Enviado por Heliodoro Morais em 13/07/2009
Reeditado em 14/07/2009
Código do texto: T1697302