As Aparências Enganam

Era uma manhã, assim dessas simples, sem nada muito especial no ambiente. Alguns pares de tênis espalhados pelo chão – uns até com os cadarços soltos e pendurados na luminária para secar mais rápido –, algumas meias secando ao lado dos cadarços, camisas e calças jeans novas no guarda-roupa, as bermudas há muito não utilizáveis (o frio estava acabando, dizia sempre a moça do noticiário, mas parecia estar sempre se enganando) enclausuradas no fundo do armário. A cozinha uma eterna masmorra pútrida e fétida: restos de comida sobre a mesa, a gordura da carne que fora preparada no dia anterior ainda condensada sobre os pratos que descansavam sob a torneira da pia, cadeiras desorganizadas ao redor da mesa, sendo que sobre esta pairavam ainda os restos da refeição anterior. Na sala, via-se uma confusão de almofadas e travesseiros sem fronha, somados a uma maré de pipoca moída e copos de refrigerante descartáveis, alguns vazios, outros nem tanto.

Sim, era uma manhã sem nada muito especial.

Ginges acordou, pisou num dos tênis esparramados, soltou um palavrão inaudível por entre os dentes ainda sujos e dirigiu-se ao banheiro (que, como sempre, era a única parte da casa que podia ser considerada limpa). Escovou seus dentes, tomou um banho quente, passou seus cremes e se maquiou dos pés à cabeça. Era dia de ver o namorado, e suas olheiras não estavam das mais animadoras. Ginges sabia que o pior ainda estava por vir...

No quarto, uma hora foi o suficiente para organizar tudo. Quase se esqueceu das meias e cadarços agora quase secos que estavam pendurados, mas não se pode duvidar da visão apurada de Ginges, ainda que a organização não seja seu forte. A sala levou ainda menos tempo, quarenta minutos e o serviço estava feito: almofadas sobre o sofá (que agora não mais deixava escorregar farelos e restos de pipoca quando apertado/batido/estapeado), copos esvaziados e colocados no lixo, travesseiros e suas fronhas arrumados nos quartos. Enfim, parecia que seus pais nem tinham viajado já há alguns dias. Ginges adorava quando seus pais viajavam, o sentimento de liberdade e a possibilidade de fazer o que bem entendesse na hora que tivesse por melhor fazia com que seu corpo automaticamente se portasse como se estivesse de férias, e Ginges simplesmente amava as férias.

Essa súbita alegria desmoronou e Ginges fechou seu semblante logo que abriu a porta da cozinha. Com certeza a faxina aqui demandaria mais tempo... Somente duas horas e meia depois de começar a lavar os pratos, Ginges varria a última migalha de pizza (meia quatro queijos, meia napolitana, com bordas bem crocantes por favor, viu, senhor Silveira?) para a lavanderia, onde juntou tudo, ensacou e atirou no lixo, da mesma forma como logo depois se atirou no sofá recém-limpo e perfumado para receber seu namorado.

“Minha nossa, pra que tomar banho antes de fazer uma faxina dessas?”, pensou Ginges. Pois é, parece que às vezes o sono fala mais alto. Ginges sentiu-se sem vontade (não não, passar maquiagem de novo não) e achou melhor ficar assim mesmo, não estava tão ruim, estava? E, afinal, se Peter amasse Ginges tanto assim, não veria problema algum em encontrar seu amor nesse estado, veria? Não, claro que não.

E foi assim, no sofá, que Ginges aguardou Peter chegar e tocar a campainha de sua casa, o pretexto, como de costume, era um almoço casual, que acabava se extendendo tarde e noite adentro (claro, com os pais viajando, tudo fica mais fácil, Ginges pensava). À uma da tarde em ponto Peter toca a campainha, e Ginges, despertando de um suave cochilo, caminha sorridente para receber seu namorado recém-chegado.

“Oi amor”, Peter cumprimenta, dando a Ginges um (até que) demorado beijo.

“Oi, Pê”, Ginges responde, abraçando-o na cintura.

“Sentiu minha falta?”.

“Claro, se eu te disser que estava quase morrendo de tanta saudade você acredita?”. O mesmo papinho de um casal amante de sempre...

“Posso pensar...”, Peter respondeu, fingindo uma rispidez que Ginges sabia, era só aparente.

“Você não vale nada!”

“É, eu sei... Você não vai me convidar pra entrar?”.

Os dois entraram, sentaram no sofá. Quem quebrou o silêncio foi Peter:

“Você contou a seus pais sobre a gente?”.

“Ainda não deu, eles foram viajar, eu tinha te falado lembra? Voltam só amanhã à noite. Quando eles voltarem, prometo que conto. Não quero mais esconder nada deles, e nem tenho mais medo do que eles vão pensar, desisto de ser covarde!”

“Faz bem, amor, faz bem. Não suporto mais todo esse mistério. Heim, mudando um pouco de assunto, da última vez que eu vim aqui, esqueci minha camisa contigo. Lembra? Uma pólo azul marinho, lisa...?”

“Ah, amor, sei de qual você está falando sim! Está lá em cima, guardei pra você no meu armário... Está na gaveta do meio, do lado das minhas cuecas”.

Ginges, 22 anos, engenheiro na área de informática, não criava vergonha na cara e optou por continuar um bom tempo morando com seus pais. A vida era tão mais leve... Mãe lava minha bermuda aqui, mãe passa minha roupa lá, mãe prepara um macarrãozinho acolá...E assim Ginges levava sua vida rotineira, esperando ansiosamente seus pais viajarem pra poder chamar seu namorado pra uma visitinha. Nenhum dos dois desconfiava da homossexualidade de seu único filho, mas sua mãe uma vez estranhou o fato de encontrar – ainda que casualmente – algumas revistas de nudez masculina no quarto de Ginges (“Achei na casa da minha namorada e fiz uma apreensão, mãe!”, falou na primeira vez Ginges, e sua mãe pareceu aceitar sempre a mesma desculpa nas vezes seguintes).

O pai de Ginges, empresário de renome, é daqueles que, se descobre que o filho é viado, chuta-lhe o rabo e pergunta se gostou, tamanha sua grosseria. Numa das vezes que o assunto veio à tona, opinou dizendo que homossexualismo (pra ele, “boiolice”) se curava era na porrada (“e nada de usar vara pra bater, porque é capaz do cara gostar”, dizia rindo todo orgulhoso, achando-se o dono da razão).

Com uma família dessa, Ginges nunca se sentiu à vontade pra revelar sua verdadeira opção sexual, e sempre conseguia se desviar de perguntas como “Quando vai trazer uma namorada aqui pra casa” respondendo com frases clichês do tipo “Não tenho namorada, comigo o negócio é sem compromisso”. Seu pai achava o máximo, era do tipo que chegava pros amigos no trabalho contando que seu filho era o maior conquistador (pra ele, “comedor”) que ele conhecia. Pobre senhor, inimaginável sua reação quando descobrisse que seu próprio filho, “o comedor”, era na verdade o rei da “boiolice”!

E agora vinha Peter, pressionando-o a contar logo tudo a seus pais. Ginges nunca tinha dito a Peter como eram seus pais e o tipo de resposta que ele provavelmente ouviria depois de contar a “desgraça”. Já imaginava os berros de seu pai (“tire esse rabo usado da minha frente e não ponha mais os pés aqui”), o choro alto de sua mãe, e os comentários dos vizinhos (e, por que não, dos colegas de trabalho do seu pai, o que o dava certo prazer) nos dias seguintes. Ginges mentiu. Ainda era covarde, claro que era, mas torcia pra Peter não perceber o tom de incerteza em sua voz. Pareceu ter funcionado, Peter não insistiu no assunto, logo mudando o rumo da conversa e perguntando sobre sua camisa, camisa esta que Ginges cheirava todas as noites antes de dormir, só pra se lembrar do seu amado.

“Você está bem?”, Peter perguntou.

“Claro, só um pouco cansado. Tive que arrumar tudo aqui hoje, estava uma bagunça! Culpa daquelas meninas!”.

“Você e essas suas amigas...”, Peter retrucou rispidamente.

“Pê, era só o que me faltava, ciúmes de mulher?!”

“Ai, Gigi, vai saber, as aparências às vezes enganam...”.

Fernando em Pessoa
Enviado por Fernando em Pessoa em 19/07/2009
Código do texto: T1707117
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