Fenômenos da natureza (EC)
Chuva


 
Chico precisava desesperadamente de dinheiro. Sua mulher, Dodô, estava com maleita, após o parto do oitavo filho. Este, quase à morte por falta de leite e por não ter sido ainda benzido. A benzedeira morava rio acima e precisava ser trazida por um barco de aluguel, pois o seu estava com o casco partido. Até ali, Chico e seu povo, viviam do que o rio dava, mas com "a peste do cipó", como chamavam, os peixes haviam morrido. Boiavam como folha caída, com a diferença que havia um mau cheiro impressionante.
          Foi assim que, contra os ensinamentos do velho “vô”, se dispôs a participar da expedição à mata virgem, que agora via como a única fonte de sustento naquela região perdida de Deus.
Lá na mata, onde as árvores e os animais reinavam absolutos até pouco tempo, se embrenharia junto com os outros homens e os instrumentos para trabalhar. Eram vinte e tantos homens, mais robustos ou mais franzinos do que ele, alguns tinham a timidez e a conformação com a sorte do caboclo ribeirinho, outros sonhavam enriquecer de alguma forma e ganhar mundo.
          A seringueira, uma das mais altivas dentre as damas verdes, de longe avistou aqueles homens se aproximando como animais ruidosos. Já vira que aqueles instrumentos eram ferozes e destruidores, pois haviam serrado algumas árvores, repletas de cipós, inclusive timbó e, derrubado-as no rio com algum gás, envenenaram a água, matando os peixes. Coisa de humanos.
          Chamou o tucano e outros pássaros para que urgentemente espalhassem pela floresta a notícia da aproximação dos homens com serras. A fala da floresta se dava desse modo, os seres de raízes, que não podiam se locomover, falavam com os animais de asas, se precisassem que a notícia fosse o mais longe possível, ou com os animais de quatro patas para divulgação pelas redondezas. Além disso, contavam, em último e grave caso, com os ventos para atravessar oceanos e clamar por fenômenos do outro lado do mundo. 

          A resposta veio de imediato, na forma de tempestade, raios, trovões... Chuva. Muita chuva. Choveu durante quarenta dias e quarenta noites, sem cessar. Era chuva grossa, chuva em pé, chuva deitada, fina que nem uma carícia, tempestades que fustigavam como uma surra demorada. Molharam toda a face da terra avistada em meio aquele verde antes fechado, que agora lá de cima as nuvens sombreavam desertas clareiras. 
          Encharcados, os homenzinhos enrolavam-se em lonas, mudavam de um lado para o outro, enquanto rezavam para que nenhuma árvore lhes caísse em cima. 
Não poderiam retornar, pois haviam chegado muito longe. Ali estavam protegidos dos olhos contrários a extração de madeira nativa e também de qualquer socorro ao se perderem. Alimentavam-se das castanhas que caíam, de pupunha cozida com sal que levaram consigo e de outras frutas que encontravam. Fogo não havia, pois a chuva não permitia mantê-lo aceso. Calor, somente o dos trapos que usavam para se abrigar.
          Finalmente o arco-íris surgiu e as aves foram vistas em bando retornando às arvores centenárias. Seria a hora da derrubada para salvar a expedição, antes que os patrões não quisessem mais pagar-lhes pelo trabalho. Se alguns ainda tinham condições de trabalhar, o mesmo não acontecia com os que haviam adoecido. Mais da metade. Não dariam conta de retornar para casa. Além dos doentes, havia outros problemas. Como levariam de volta as toras se o rio estava muito cheio e suas águas descontroladas? E mais! Como encontrariam o caminho de volta em meio a tanta água e sem nenhum barco? Se ao menos houvessem trazido um cachorro... 
           Chico fazia parte dos que já estavam doentes. E doente sonhava com as histórias do “vô” holandês, que contava das coisas lá de sua terra distante, do frio intenso, da neve que caía em flocos ou granulada, como era a luta pela sobrevivência por viver abaixo do nível do mar. Todos chamavam seu antepassado de “vô” por causa do seu nome que tinha “Van” e depois uma porção de sílabas difíceis de pronunciar. Com um frio que parecia impossível de cessar, lembrou-se da beleza dos fogos fátuos, ou “fogo corredor”, que era avistado lá pelos pântanos, ou por cima do mundo dos mortos. Ali deveria ter calor, aquela luz azulada que o aqueceria e o faria subir mais alto do que estava por olhar acima da mata.
          Seu velho “vô” agora o chamava, de abraços abertos, sorrindo. Foi ao seu encontro e ouviu dele: - Tenha certeza que a natureza é sábia e tem sua própria linguagem. Ela existe há milhões de anos e continuará existindo, além de todos nós, meu filho.
        

 
Meriam Lazaro
 
 

Este texto faz parte do Exercício Criativo - Fenômenos da Natureza
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                                           “Se uma borboleta bate as asas na Amazônia, o clima do Himalaia é alterado”.
                                                                                                      (Livre adaptação do "efeito borboleta" - Teoria do Caos)