O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo III

3 - A estranha morte de Alberto

Eis que surge à minha frente um rio cujas águas cristalinas permitem-me a deslumbrante visão dos peixes que nele vivem. O ambiente é calmo, dócil e agradável. Uma brisa leve acaricia o meu rosto e assanha os meus cabelos. O único som que escuto vem da maestria da natureza que se manifesta no breve sussurro das águas do rio, no vento soprando as folhas das árvores e no lírico e suave cantar dos pássaros. O meu corpo parece flutuar quando os meus pés tocam as folhas frescas e levemente molhadas espalhadas pelo chão da trilha entre as árvores. Eu vago sem rumo à procura, talvez, de mim mesma. Não há razão nestes fatos, porém uma força irresistível me impulsiona a continuar naquele lugar e, novamente, o rio está à minha frente, sento-me na margem e com os pés toco levemente as águas calmas e frias na parte mais rasa, vejo os peixes que nadam tranquilos, como se estivessem brincando no fundo do rio. De repente, em poucos segundos, os peixes sofrem uma estranha metamorfose que vai transformando todos eles em livros, rapidamente as águas límpidas do rio são preenchidas por milhares de brochuras de diversas cores, tamanhos, formatos e espessuras, todas elas fechadas, nenhuma estava aberta, não conseguia saber de quais assuntos tratavam, pois devido à distância em que estavam e à rapidez com que eram levadas pelas águas do rio não era possível ler os títulos impressos nas capas.

Um dos livros foi trazido pela correnteza que o deixou à margem do rio na qual eu estava, este ficou aberto e à disposição de quem quisesse lê-lo. Como só eu estava ali, senti uma enorme curiosidade por saber do que ele se tratava, sobre qual assunto ele teria sido escrito e quem o teria escrito, mas, após este fato, uma pequena embarcação apontou ao longe e foi se aproximando, desviando-me a visão do livro aberto, até que pude notar que havia um homem em pé dentro dela, à distância não pude ver o seu rosto, embora a correnteza do rio continuasse trazendo vagarosamente o barco em minha direção. O barco continuou se aproximando, se aproximando, atracou bem na margem na qual eu estava e, só então, consegui identificar o homem que estava em pé dentro dele, era Alberto. Ele estava radiante, sorridente, trajava-se como um nobre medieval, vinha triunfante, à maneira daqueles antigos desbravadores e heróis que aparecem na hora derradeira para aliviar ou socorrer alguém em desespero. Mesmo achando esquisitas as circunstâncias e os acontecimentos, continuei acompanhando com o olhar atento o que se passava, tudo em Alberto era lindo, envolvente e misterioso, ele ostentava um cajado na mão direita que reluzia uma espécie de feixe de cor esmeralda. Ao descer, já na margem do rio, Alberto observou o pequeno barco, empurrou-o com um dos pés de volta ao destino das águas –– “Agora não vou mais precisar de você” –– dispensou o barco com estas palavras e começou a caminhar na direção do livro aberto, porém, antes que o alcançasse, apareceu à sua frente um outro homem, era Mário que também estava trajado com vestimentas medievais, no entanto, estas de camponês, estava mal-humorado, tinha uma enorme cicatriz no rosto e com uma voz acentuadamente rouca dizia aos gritos:

–– Não se aproxime deste livro, desgraçado! Ele me pertence, ele é meu! Não deixarei ninguém saber o que vai escrito nele, muito menos um facínora como você!

–– Saia do meu caminho, verme! Caso contrário, serei obrigado a exterminá-lo! –– bradou Alberto.

–– Nunca! Jamais desistirei do que me pertence, mesmo que isto me custe a vida! –– arrematou Mário.

Alberto atirou-se sobre Mário e o golpeou com o cajado dourado várias vezes na cabeça. Mário, devido à violência sofrida, caiu desacordado e todo ensanguentado na beira do rio, em seguida, Alberto, aos ponta-pés, o empurou para dentro das águas, a correnteza encarregou-se de levar Mário, provavelmente já morto, embora rapidamente. Eu na simples condição de observadora destes fatos nada podia fazer, tentava andar e as pernas não ajudavam, tentava gritar e a voz não saia, tentava fechar os olhos e as lágrimas não deixavam, tudo era muito estranho para mim. Terminado este fato horripilante, Alberto caminhou até o livro aberto e pôs-se a lê-lo, ao aproximar-me, pude dar alguns passos, fixei meus olhos no título: ANA. Era o meu nome gravado com letras douradas, mas eu nada podia ler do que estava escrito dentro dele, tentava cravar os olhos em suas páginas, enquanto Alberto o segurava e lia-o prazerosamente. Algo inexplicável fazia com que eu não conseguisse entender nenhuma palavra escrita naquelas folhas, apenas Alberto parecia ler e compreender o que o livro ocultava de mim. Após folhear a última página, Alberto fechou o livro e o pôs embaixo do braço direito, tomou minha mão e começou a caminhar me conduzindo na direção do rio, eu não conseguia falar nada, por mais que eu me esforçasse a minha boca não era capaz de pronunciar uma única frase, estava muito exausta e, instintivamente, apenas acompanhava Alberto. Alguns livros que preenchiam o rio submergiram formando uma espécie de ponte, ligando uma margem a outra, pela qual iniciamos a travessia a passos rápidos. Logo que alcançamos a outra margem, vi um grande castelo medieval à nossa frente e nesse instante a minha voz se fez firme e forte:

–– Alberto, o que você fez com o Mário?

–– Eu não fiz nada, Ana. O Mário mereceu o destino que o mundo reservou a ele –– respondeu-me calmamente, como se nada de tão horripilante tivesse acontecido.

–– Você matou o Mário e vem me dizer que não fez nada, você está maluco ou acha que sou boba?

–– Ana, estava escrito. Há fatos na vida que não podemos compreender, mas muitas vezes as mudanças que eles trazem são necessárias para que haja uma reviravolta na ordem das coisas.

–– Onde está a Mirtes? Aonde vamos agora? –– indaguei.

–– Todos estão bem, não se preocupe. Agora vamos para o nosso castelo, a tempestade se aproxima e o perigo que corremos aqui fora é iminente, precisamos encontrar refugio urgente.

Eu não entendia nada, quanto mais tentava encontrar respostas para as perguntas que a minha mente teimava em formular, mais percebia o quão distante estava a realidade, porém continuei seguindo Alberto em direção ao castelo. No caminho florido e arborizado, nuvens cada vez mais escuras cobriam o céu, trovões começaram a ser ouvidos com frequencia, até que depois da longa caminhada chegamos ao castelo, empurramos uma enorme porta de madeira maciça e entramos, depois encostamo-la de forma que se trancasse. Dentro do castelo tudo era deslumbrante demais, vi logo na entrada uma enorme sala cujo teto, bem no centro, ostentava um reluzente lustre de cristal, havia nela também duas poltronas enormes perto de uma lareira acesa, além de uma estante cheia de livros que ocupava uma das paredes por completo, do chão ao teto, uma escada se encarregava de facilitar o alcance dos livros que ficavam na parte superior, Alberto encontrou um espaço vazio na estante e ali pôs o livro que levava o meu nome e voltando-se para mim:

–– Este era o último livro que me faltava. Agora posso morrer em paz.

–– Por que este livro leva o meu nome, Alberto?

–– O porquê de muitas coisas na vida não nos pertence, Ana. Você, por exemplo, poderia me dizer por que estamos aqui?

–– Não, não poderia.

–– Então, por que perguntar sobre o que nunca saberemos a resposta?

Estranhei as palavras ditas por Alberto, mas decidi não perguntar nada sobre o que elas significavam, não adiantaria muito. Fui conduzida por ele aos outros aposentos do castelo, um era mais belo que o outro e, apesar do estilo medieval e sombrio do lugar, havia ali algo de familiar que me fascinava. Em um destes aposentos havia uma mesa belíssima à luz de velas que se encontrava à nossa espera, era a sala de jantar. Ceamos divinamente e saboreamos um delicioso vinho francês. Depois disso, Alberto me conduziu a outro aposento do castelo e, ao abrir a porta, apresentou-me o local:

–– Eis o nosso ninho de amor, minha querida. Aqui poderemos descansar sem sermos importunados por ninguém. Por que você esperou tanto tempo para vir até aqui se entregar a mim se eu sempre quis tê-la? –– perguntou-me Alberto acariciando suavemente as minhas mãos.

Olhei para dentro do aposento e confesso que nem nos sonhos poderia imaginar algo tão belo como aquele lugar. Era um quarto de casal lindíssimo, indescritivelmente fascinante, abrigava uma cama de alvura tão sublime que ofuscava minha visão. Havia nele também tapetes, almofadas e adornos que completavam o cenário, tudo impecavelmente limpo. Uma forte luz invadia a grande janela frontal da qual podíamos avistar um vilarejo distante, nenhum outro aposento naquele castelo era tão encantador, tudo era muito especial naquele lugar, firmei meus olhos no rosto de Alberto e voltei às indagações:

–– Alberto, você enlouqueceu? Nós não somos casados! O que você quer comigo neste quarto? Onde estão a Mirtes e o Mário?

–– Já disse que eles estão bem, minha querida. Saiba que aqui, neste lugar só nosso, somos mais casados que nunca. Você veio em busca da realidade que não encontraremos em lugar nenhum que não seja no castelo dos nossos sonhos. E, para finalizar a sua pergunta, eu quero tudo com você.

–– Eu não estou entendendo nada, o que isso significa? –– tremia incomodada e nervosa.

–– Calma, meu amor. Isto significa que eu a amo, sempre vivi perdidamente apaixonado por você e chegou o nosso tão sonhado momento –– respondeu-me Alberto, tirando a camisa tranquilamente.

Não pude esconder que o tórax nu e bem definido de Alberto me excitou, não sei se o clima daquele castelo afetou-me os sentidos ou se foi o vinho, mas o fato é que eu fiquei hipnotizada contemplando a beleza, os pêlos e a maciez do corpo daquele homem à minha frente, esqueci-me naquele instante de tudo o que me ocupava a mente, não podia negar que Alberto era definitivamente meu, como eu jamais havia imaginado, desejava-me por completo. Em seguida, transfixou-me com um olhar de desejo que eu jamais havia presenciado em homem nenhum na minha vida. Ele se aproximou e me abraçou bem forte, beijou-me gostosamente enquanto me despia sem pressa, sem confusão, logo as mãos dele descobriram maliciosamente cada cantinho do meu corpo. Entreguei-me à rigidez daqueles braços másculos e àquele beijo molhado, senti que àquela altura não podia mais resistir à beleza e virilidade de Alberto, um tremor gostoso percorreu todo o meu corpo, seguido por um calor que me fervia até as entranhas. Alberto despiu-se por completo e me possuiu feito um alazão enlouquecido pela fêmea no cio. Que delícia! Eu nunca havia sido tão amorosamente possuída assim em toda a minha vida.

Depois de toda a prazerosa loucura que aconteceu, Alberto beijou-me carinhosamente, levantou-se ainda nu, exibindo-me mais uma vez toda a sua exuberância masculina, caminhou até a janela, olhou para fora, respirou o ar da brisa que levemente entrava no quarto e pôs-se de pé no parapeito:

––Ana, eu amo você, nunca se esqueça disso. Agora que tudo está selado entre nós, cumprirei o que é do meu destino.

Alberto, então, de pronto, sem mais nem menos, atirou-se da janela. O que pude fazer foi apenas gritar desesperada, desconsolada e apaixonada:

–– Alberto, não! Alberto, não! Não faça isso! Alberto! Alberto!

Senti algo estranho, era como se uma mão me chacoalhasse na cama, então fechei os olhos e me virei para o outro lado, debatendo-me.

–– Acorda, Ana, acorda! –– insistia Mário na tentativa de despertar a mulher que, vagarosamente, voltava do estranho sonho:

–– Mário, acho que eu tive um pesadelo.

–– Eu sei que teve, querida, você estava gritando: Alberto! Alberto!

–– Desculpe-me, Mário.

–– Tudo bem. Durante estas últimas três semanas, você se esforçou para não se lembrar deles, talvez isso a tenha incomodado bastante.

–– Eu sonhei que você e o Alberto...

–– Não fale nada agora, esqueça o pesadelo, é só um sonho e nada mais, sei que nada de bom trouxe a você.

Ana se calou e, por um momento, lembrou-se de que nem tudo havia sido ruim. Não conseguia entender qual a razão de ter tido um sonho tão estranho, parecia tão real, algo ficou no ar, mas o conselho do marido era pertinente e preciso para a ocasião, decidiu guardar suas emoções em silêncio.

–– Querido, estou com sede. Você pode me pegar um pouco de água? –– pediu Ana.

Mário se levantou, foi até a cozinha, encheu quase até a borda um copo com água e o trouxe à mulher:

–– Aqui está, Ana. Está se sentindo melhor?

Ana tomou quase toda a água, levantou a cabeça, olhou para o teto, como a colocar a mente em ordem e confortou o marido:

–– Estou, Mário. Foi só um susto, você e o Alberto morriam no meu sonho, ele por último, por isso eu estava gritando o nome dele. Tenho medo de alguns sonhos, ás vezes eles parecem ser tão reais que mexem com a gente. Tenho medo de que sejam prenúncios.

–– Bobagem, querida. Sonhos são apenas frutos do cansaço que impomos à nossa mente, a realidade é bem diferente. Esse negócio de mostrar o futuro é besteira.

–– Não sei, não... uma vez eu tive um sonho muito estranho com uma vizinha, uma colega da escola, neste sonho ela morria. E não é que, em duas semanas, ela adoeceu e morreu mesmo.

–– Coincidência, Ana. Essas coisas acontecem.

–– É, você pode até ter razão, dizem que os sonhos também revelam desejos reprimidos, mas eu acho que muitos deles são avisos que vêm antes que alguma coisa inesperada aconteça.

–– Vamos dormir agora, Ana. Já é madrugada de sábado, vamos descansar para aproveitarmos o último dia destas férias, você está vendo que eu ainda não morri, depois você liga para a Mirtes para saber se o Alberto está vivo também e pronto. Amanhã bem cedo retornaremos a São Paulo.

–– Que horas são, Mário?

Mário acendeu a luz do abajur que ficava ao seu lado na cabeceira da cama, olhou para o relógio e disse:

–– São três e meia. Bons sonhos, querida –– virou-se para o outro lado e dormiu imediatamente.

Ana, envolvida em pensamentos e lembrando-se dos últimos momentos do que havia sonhado, não conseguiu dormir mais. Sentiu vergonha de gostar de recordar os momentos íntimos dela com Alberto no sonho, mas logo aceitou a situação, afinal, como lhe dissera Mário, aquilo tudo fora “só um sonho e nada mais”.

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Vicente Miranda
Enviado por Vicente Miranda em 08/08/2009
Código do texto: T1744068
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