JABUTICABAS

JABUTICABAS

Aquele grito no meio da noite a acordou. Pegou-a desprevenida, mas logo se viu acordada crendo que o grito fora mesmo dentro dela. Dentro do seu espaço lúdico.

De manhã, se pega a rir. Do que? Olhando o espelho, a face lívida, os lábios descorados, o bastão de batom se aproximado na ponta dos dedos.

Um grande dia: entrevista de emprego. Passeia em volta do quarto, já arrumada, os lábios carmim, certa palidez disfarçada pelo ruge.

Independência! Gritara num passado não muito remoto, na sala quadrada de moveis negros na casa dos pais, sentindo um cheiro de estrume tão comum desses bairros de periferia.

Ali estava capengando num apartamento apertado, cheirando a mofo. Quase nenhum móvel. Um colchão sem cama, um espelho em cima de uma cômoda velha roída por cupim. Não mudara nada em sua vida, ou antes, mudara para pior. Lá ao lado dos pais comia as frutas do quintal na sobremesa; chegando a janela podia sentir o gosto das jabuticabas. As jabuticabas tão pretas.

Roxinhas, roxinhas, dizia a mãe, tão nova com a boca murcha sem dentes, mas juntando dinheiro para dentadura. “Saudade de roer uma rapadura” – lamentava sentada a mesa catando feijão, e o pai redargüia, entrando de súbito a procurar água no filtro: “chupa, da no mesmo fica até mais gostoso”.

Foi por isso, só por isso, apenas por isso que estava nessa situação. Aquilo era deprimente, era, era, ela esperando namorar rapazes que nunca pareciam passar de moleques, sempre trepando em lajes para soltar cafifa; com os shortes frouxos caindo, mostrando cuecas que pareciam feitas de sacos de cebola.

Os matos recendiam em bosques pelos terrenos baldios.As noites eram frias, cheias de mosquito e escuras em muitos trechos.

Mas o que era isto? Da licença, freou o pensamento, sentou-se numa almofada encardida no chão de taco. Encostou o queixo duro nos joelhos juntos que abraçou com compaixão, buscando a vontade de chorar.

Quanta patifaria. Um emprego que não durou nem três meses em que não fez nada, apenas tinha que ficar parada junto às bancas de roupas baratas no meio de uma loja de varejão, apenas perguntando aos clientes que entravam se precisavam de ajuda. Eles nunca precisavam, e ela ficava olhando triste e com certo desdém para os que escolhiam aqueles trapos baratos com tanto ardor, fungando o nariz com energia.Tanto desperdício, e às vezes era de se ruborizar por não ter nada a fazer, olhando os garis levantando poeira com suas vassouras enormes enquanto cantavam e sorriam, e pareciam olhá-la com um sorriso debochado como quem diz: “que vida boa hein”, e às vezes acontecia de o nariz coçar que era uma tentação, e se perguntava quando voltava para casa por que depois não coçava mais.

De pé, indo até porta, riu, riu de si mesma, que ia decidida, um pouco bamba no único sapato de alto, descendo a escada, com medo de quebrar um dos saltos; rindo de si mesma que corria atrás da mesma oportunidade de emprego. Novamente uma loja, desta vez de cosméticos. Talvez os clientes fossem realmente precisar dela. Quem sabe?

Dentro do ônibus, um pouco vazio, cada qual olhando para janela. O motorista assobiando, cumprimentando os idosos que entravam pela frente, fazendo cara feia para os estudantes que entravam pela frente também. Nesse momento, o cobrador, lá atrás, por detrás de sua roleta parecia erguer a cabeça, que mantivera abaixada numa soneca, e fuzilava com os olhos os estudantes que entravam pela frente. Ela podia compreender isto, e inclinava seus olhos para um para o outro, logo voltando para sua janela, ver sua paisagem que se movia.

Então se lembrou: “Próximo a Estação...” e pôs-se de pé, apertou com força a cigarra. O motorista freou um pouco brusco. Ela desceu agradecendo, contente por ele demorar a olhá-la no traseiro.

Mas eis que na calçada, não atravessou o outro lado para estar no prédio onde aconteceria a entrevista. Sem pensar em nada, subiu as escadas da estação, aproximou-se a bilheteria, e um pouco ofegante pediu uma passagem para...

No trem, ia sonolenta e monótona ao seu balanço, sem olhar para ninguém, como se achasse num ato criminoso. Apenas com a roupa do corpo, e a bolsa, e sabia que não voltaria, não voltaria pelo menos tão logo, mas mordia os lábios com ansiedade, plena de desejo de chupar as jabuticabas. Roxinhas, roxinhas...

Rodney Aragão.

12 de agosto de 2009