O POETA NA LIVRARIA

“Ao diabo com os sonhos: ou a gente age, ou a morte de repente nos cutuca, e não há sonho na morte (Milton Hatoum)”

- Então, o senhor deseja atuar como Assistente Cultural em nossa livraria...

- Não é bem isso. O que eu quero mesmo é trabalhar vendendo livros.

- O cargo é esse mesmo, é bom o senhor ir se acostumando, caso venha a ser contratado. A pessoa vende livros, que é a função, mas o cargo é de Assistente Cultural.

- Certo.

- Aliás, nesta função não se vendem apenas livros. O Assistente vende também artigos de papelaria, computadores, acessórios, CD´s e DVD´s, papel de presente, bijuterias, porta-retratos, máquinas fotográficas, camisetas... enfim, todos os produtos que há para se vender numa livraria.

- Certo. Até aqui, tudo bem, acho.

- E, nos horários de maior movimento, o Assistente atua também no nosso Cafezinho Literário, que é um ponto-de-venda que criamos para incrementar as vendas e fazer com que o cliente fique mais tempo dentro da loja. Um investimento, por assim dizer. A pessoa toma um café, bate um papo, folheia um jornal, uma revista...

- Entendo. Mas não seria melhor que balconistas e garçons fossem contratados para atuar neste lugar? Afinal, penso que o vendedor... perdão, Assessor, deve estar disponível para auxiliar os clientes na hora da escolha dos que livros.

- Não é bem assim que funciona. Hoje em dia, os colaboradores devem ter como principal característica a multifuncionalidade, ou seja, a capacidade de desempenhar com competência o maior numero possível de funções. E isso não acontece somente aqui, em nosso estabelecimento. É uma tendência de mercado, e não há como escapar dela. Eu mesmo, que sou Diretor de Relacionamentos, também atuo ocasionalmente em áreas da operação. Se for necessário pegar um balde e uma vassoura para limpar a loja, eu o farei.

- Lógico, lógico. Eu entendo.

- Mas voltemos ao seu caso. Por qual motivo o senhor decidiu optar por iniciar uma carreira de Assistente Cultural?

- Bem, na verdade não se trata de um só motivo, e sim de vários. O primeiro é que estou desempregado. O segundo, diretamente ligado ao primeiro, é que tenho família -mulher e filhos. O terceiro é que tenho encontrado muita dificuldade em me recolocar em uma função similar à que exerci em meu último emprego. Então, tive a idéia de tentar uma vaga de trabalho vendendo livros. E esta decisão se deve ao fato de que a leitura faz parte de minha vida de uma maneira muito especial. Para o senhor ter uma idéia, minha biblioteca particular conta com aproximadamente seiscentos volumes, e diariamente reservo pelo menos uma hora para me dedicar à leitura. De forma que, nos últimos anos, adquiri um conhecimento razoável sobre autores e suas obras –o que, acredito, é a premissa básica para quem pretende ajudar pessoas a comprar livros. Atuando, claro, como Assistente de Livraria, como o senhor disse.

- Assistente Cultural.

- Certo, claro, Assistente Cultural.

- E quanto às outras características da função, que lhe relatei há pouco? O senhor se considera apto a atuar de forma satisfatória na comercialização dos outros produtos da livraria?

- Outros produtos? Ah, sim, claro. As camisetas, as bijuterias, os álbuns de fotografia... Claro, não vejo problemas. Mas o que a loja mais vende são os livros, não são?

- São. Bem, nem sempre. Depende da época e da demanda. Natal, Dias dos Pais, Dia dos Namorados... Nestas ocasiões vendemos de tudo, inclusive livros. Mas ultimamente o que mais temos vendido são os produtos temáticos . O senhor, muito provavelmente, sabe do que estou falando.

- Claro, claro, os produtos temáticos...

- As camisetas, por exemplo.

- Sei. As camisetas.

- O conceito é simples. Aliás, uma bela idéia do nosso time de marketing. Esse pessoal sai da faculdade com mil coisas na cabeça, o senhor precisa ver a qualidade dos últimos estagiários que contratamos.

- Imagino.

- Mas vamos às camisetas. Pegamos uma frase de efeito de algum escritor bem conhecido, estampamos –com o devido crédito, evidentemente- e colocamos pra vender. E sempre usamos frases, ou pequenos poemas, que tenham relação com datas comemorativas com grande apelo comercial. Vende muito, geralmente é um dos nossos campeões de vendas. Outro período de pico é o da volta às aulas, quando somos obrigados a reforçar nosso quadro de funcionários com a contratação de pessoal extra, para dar conta de tantos pedidos e orçamentos.

- Que bom!

- Agora, um setor que nos preocupa muito, devido à acentuada queda no volume de vendas, é o de CD´s e DVD´s. Hoje em dia o habito das pessoas mudou drasticamente, ninguém mais compra esse tipo de produto, o senhor acredita? Ninguém coleciona mais nada. Quem quer assistir a um filme, um documentário, ou ouvir uma música, baixa da internet para o seu próprio computador pessoal. Isso tem causado muita preocupação entre nós, os diretories, e muito provavelmente seremos obrigados a repensar este departamento. Pensamos em instalar ali uma lan-house, por exemplo, um business center...

- Certo. E os livros?

- E tem os livros, também, claro. Aliás, falando em livros, o senhor diz que gosta muito de ler. Mas que tipo de leitura o senhor pratica, exatamente?

- Gosto muito de literatura brasileira. Agora, por exemplo, estou terminando a releitura de...

- Pedro Lebre! O senhor já leu? O maior autor de best-sellers do mundo. Brasileiro! Isso não é fantástico? Um país como o nosso, com tantos problemas, capaz de revelar ao mundo um talento indiscutível como este! Um dos maiores escritores de todos os tempos, com certeza! É ou não é fantástico?

- Espera um pouco. Autor de best-sellers, concordo. Que vende muito, também. Agora, quanto a ser um dos maiores escritores de todos os tempos, como o senhor disse aí...

- Pois é. Sem falar que o sucesso dele abre inúmeras portas para os demais escritores brasileiros, que certamente estão sendo vistos com outros olhos.

- Não sei, não.

- Mas vamos continuar. O senhor já leu “Pais Reticentes, Filhos Intransigentes”?

- Ainda não.

- “O Comprador de Pesadelos”?

- Também não.

- “Como Se Tornar Um Liderado Servidor”? “O Padre e o Executado”?

- É... não.

- Espera um pouco. Afinal de contas, que tipo de livros o senhor lê? Como pode querer se candidatar a uma vaga de Assistente Cultural em nossa loja se não está atualizado quanto às tendências do mercado editorial? O senhor me desculpe, mas se pretende atuar nesse ramo é preciso que saiba que é de fundamental importância que se esteja constantemente antenado o tempo todo!

- Olha, mas não são todas as pessoas que freqüentam livrarias que compram livros de auto-ajuda, o senhor não acha? O senhor poderia, por exemplo, me colocar nas estantes de literatura brasileira, romance e poesia, literatura portuguesa, latino-americana, africana...

- Africana?

- Americana, americana. Literatura americana.

- O senhor tem alguma coisa contra livros de auto-ajuda?

- Não, não, longe de mim, claro que não. Apenas não estão entre os meus preferidos. Mas respeito, não tenho nada contra. Afinal, se vendem tanto, é porque apresentam alguma qualidade, é ou não é? Se o povo lê, é porque deve ser bom.

- Claro, é isso mesmo, a idéia é justamente essa. Então, vamos continuar. Fale-me da sua experiência profissional nos últimos dez anos.

- Bem, nesse período trabalhei na mesma empresa, uma indústria de alimentos. Exerci primeiramente a função de Auxiliar de Almoxarifado, passando a Encarregado e, por último, a Comprador, até que a empresa optou por terceira este departamento, entre outros, e fui demitido. Durante este período, fiz vários cursos na área, participei de palestras e seminários, e fui eleito para compor o Conselho de Funcionários. Foi uma boa experiência.

- Mas nada que remeta a livros, concorda?

- Não, nada que remetesse a livros. Com exceção do que lhe relatei há pouco, quando falei da minha biblioteca, minhas leituras...e minha poesia.

- Ah, o senhor escreve?

- Escrevo, escrevo, sim. Participo de concursos literários, e já fui até mesmo premiado em alguns. E publico em sites e blogs da internet, também.

- E quantos livros o senhor já publicou?

- Até o momento, nenhum. É muito caro, e sempre tive outros compromissos financeiros mais urgentes, digamos assim.

- Mas nunca apareceu nenhuma editora interessada em publicar seus livros?

- Não, até o momento, não. Nunca enviei originais para nenhuma editora, pode ser que algum dia isso aconteça. Mas, no momento, o que preciso mesmo é arrumar um emprego.

- Aqui diz que sua formação é...

- “Superior Incompleto”. Tranquei a matrícula tão logo perdi o emprego.

- E que curso o senhor fazia?

- Letras.

- Letras? Mas o senhor não trabalhava com Almoxarifado?

- Pois é, era um sonho.

- Que tipo de sonho? O de ser professor e morrer de fome?

- Não, nada disso. O sonho de ser professor e ensinar Literatura e Língua Portuguesa, que sempre foram as minhas paixões. Mas por ter passado a vida inteira escutando que “professor morre de fome”, deixei o sonho pra lá e fui trabalhar com outras coisas, que eu sempre detestei, mas que me permitiram chegar até aqui. Agora procurava retomar parte do sonho, que é o de trabalhar com livros. Mas, a julgar pela nossa conversa, não vai dar certo. Pelo que vi, vou ter que voltar a procurar emprego em indústrias, ou coisa parecida, para conseguir pagar minhas contas e sustentar minha família. Aí o tempo passa, eu me aposento, e quem sabe posso voltar a cursar a faculdade dos meus sonhos. Então, uma vez aposentado, posso me dedicar exclusivamente a ensinar Literatura. E transmitir aos outros meu amor pelos autores e suas obras, meu amor pelos livros, pela educação. Transmitir que não se constrói nada sem uma boa base familiar, educacional, social, acadêmica... Mas não sei. Acho que perdi foi tempo.

- Geralmente é isso o que acontece quando se sonha muito, e por muito tempo.

- Talvez. O senhor, que é Diretor de Relacionamentos, ainda quer me perguntar mais alguma coisa?

- Sim, claro que sim, ainda temos que discutir suas pretensões salariais, disponibilidade de horário, ver se o senhor tem ainda alguma dúvida...

- Tenho uma dúvida, sim.

- Pois não?

- Tem alguma banca de sebo por aqui?