O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo IV

4 - A visita indesejável

–– Alô. Quem fala?

–– Oi, Mirtes, tudo bem? Sou eu, sua irmã, Ana.

–– Tudo bem, Ana! E você?

–– Também, mas estou com muita saudade de você. Eu e o Mário já estamos voltando.

–– Que bom! E como foram as férias?

–– Foram ótimas, mas faltou você, o Alberto e as crianças para que fossem melhores ainda. Senti muito a sua ausência, Mirtes. No ano que vem, quem sabe, iremos todos juntos.

–– É, quem sabe ...

–– Mirtes, vocês vão sair hoje?

–– Não. Tenho algumas costuras para fazer e o Alberto está preparando a programação para as aulas que começam amanhã.

–– Atrapalharia se eu e o Mário fôssemos visitá-los à tarde, mana?

–– Claro que não, minha irmã! Vocês são sempre bem-vindos.

–– Combinado, à tarde estaremos aí. Não vejo a hora de ver o Betinho. Depois a gente se fala mais. Beijo!

–– Outro!

Ana desligou o celular e guardou na bolsa, enquanto Mário dirigia com a atenção redobrada nas curvas da descida da serra do mar. O tempo estava bom naquela manhã de domingo, o céu azul, quase sem nuvens, anunciava mais um dia de calor intenso. Ana pegou um CD que havia trazido para ouvir no carro, uma coletânea de músicas italianas antigas, e o pôs para tocar:

–– Adoro músicas italianas, elas são tão belas, têm o poder de nos acalmar, falam com ternura sobre o amor.

–– E se falarem de amor acompanhadas por um bom vinho e uma macarronada à bolonhesa, melhor ainda –– brincou ao volante o cuidadoso motorista.

–– Mário, aonde iremos nas próximas férias?

–– Não sei, Ana. Boa pergunta. Eu estou com vontade de ir novamente para algum lugar do Nordeste, adoro as praias do litoral nordestino. Podemos ir para Porto de Galinhas, Porto Seguro, Fernando de Noronha . . .

–– Que tal se formos para Maceió? –– sugeriu Ana –– Faz anos que não vamos para lá. Quando nos casamos íamos todo ano, lembra? Fomos uns três anos seguidos de tanto que gostamos.

–– Ótima idéia! Gostei! Nós nos divertimos à beça quando estivemos em Maceió, lembro-me dos passeios de jangada na praia da Pajuçara, dos mergulhos na praia do Gunga e das visitas que fizemos de escuna às ilhas, só não lembro se eram sete ou nove, tanto faz, todas elas eram lindas, e aquela tapioquinha de coco com doce de leite devorada toda noite na praia hein, Ana? –– Mário se recordava das delícias de Maceió, quando de súbito mudou os rumos da conversa –– E lá na sua irmã, como eles estão? Você ainda não me contou nada.

–– A Mirtes disse que está tudo bem. O sonho que tive foi fruto da minha imaginação, eu estava me sentindo muito cansada naquele dia.

–– É, eu sabia. O Alberto morto! Só se o mundo acabar em barrancos para que ele morra encostado neles –– ironizou Mário.

Enquanto isso, no Ipiranga o primeiro domingo de fevereiro, véspera de ínicio do ano letivo, estava agitado, Alberto preparava a programação escolar para o primeiro semestre, enquanto planejava as apresentações às novas turmas de alunos. Mesmo entretido em anotações e planilhas, o professor ouviu que a esposa havia atendido alguém ao telefone, não tinha por hábito perguntar quem era, sabia que quase sempre se tratava de assuntos corriqueiros de Mirtes, na verdade, a curiosidade nunca foi o seu forte, porém, desta vez, algo lhe chamou a atenção, a mulher mais que rapidamente começou a ajeitar a casa como se fosse receber alguma visita, parou de escrever, mirou a esposa por sobre as lentes dos óculos, como de costume, e indagou:

–– Quem era, Mirtes?

–– A Ana, está voltando.

–– Que bom! Como ela está?

–– Está bem, virá aqui hoje, aliás, virão aqui hoje ela e o Mário.

–– O Mário? –– desanimou-se Alberto.

–– Sim, algum problema? –– perguntou Mirtes, estranhando o comportamento do marido.

––Não, claro que não.

O professor se calou e, inevitavelmente, pensou na indesejável visita do cunhado arrogante: “Como é desagradável esse Mário. Que lástima!” – suspirava Alberto –– “Provavelmente será mais uma daquelas tardes ouvindo conselhos de como se dar bem na vida e sobre o trajeto mais curto para o sucesso político, esse Mário é definitivamente um carinha metido à besta”. Alberto se culpava por ter se filiado ao PSE, sabia que só aceitou a filiação porque Mário o enchia o saco toda vez que o via, pensou que talvez desta forma o cunhado parasse de pentelhá-lo, qual nada, foi coisa pior, agora Mário contava quase tudo o que acontecia nas reuniões do partido. O professor sabia que na ocasião da filiação ao PSE não havia escolha, se não tivesse se filiado ao PSE seria visto pelos familiares como um covarde ou um homem que vive às custas de favores alheios, sem se importar mesmo com ao assuntos relativos à sua profissão, na certa seria a oportunidade que Mário teria para falar mal dele a todos. “Estou com vontade de dizer umas poucas e boas verdades para esse pequeno aspirante a corrupto” –– pensava o professor ingenuamente sem saber que o suposto aspirante era na verdade mestre em matéria de corrupção –– “mas como fazê-lo sem magoar a Mirtes e a Ana, principalmente a Ana, ela não merece isso, já lhe basta o marido que tem” –– concluiu.

O professor sabia que Mário era um sujeito que não media esforços ou consequências quando o assunto era se dar bem, fosse como fosse. Sabia também que o cunhado era um profissional desqualificado, um verdadeiro picareta, em algumas oportunidades já o havia questionado sobre alguns assuntos jurídicos básicos que quase todo mundo sabe e notara como o pseudo-advogado andava desapercebido dos conhecimentos jurídicos mínimos a qualquer bacharel de direito recém lançado no mercado das leis, todas as vezes vira Mário se esquivando: “Estudarei melhor o assunto, pois não tenho os artigos e doutrinas em mãos agora, depois lhe darei uma orientação mais elaborada, Alberto”, e até hoje, depois de anos, o professor esperava pelas singelas respostas. “Bem, não tenho saída, o jeito é esperar pela visita” – entregou-se Alberto –– “afinal de contas eu adoro a Ana e todos nesta casa gostam dela também”.

Naquele comingo Mirtes preparou o almoço: a tradicional macarronada paulistana acompanhada por suculentas almôndegas, a refeição logo fez sucesso à mesa, todos se deliciavam, enquanto Betinho se lambuzava inteiro nem aí para os apelos da mãe:

–– Filho, deixa a mamãe dar o macarrão para você – Mirtes tentava evitar o inevitável.

–– “Dessa” mamãe, “dessa” mamãe, “dessa” que eu como assim...” –– insistia o pequeno lambuzado.

–– Deixa ele, Mirtes. Ele vai se virando e logo aprende a comer sozinho, toda criança aprende assim –– manifestou-se o professor.

–– É, eu sei. Mas o menino está sujando a casa inteira, fora as roupas, o cabelo, mais tarde precisarei dar um banho nele.

–– Pode deixar, Mirtes. Eu darei um jeito em tudo.

Após o almoço, Mirtes voltou à oficina, tinha ainda muito a coser, Lívia foi ajudá-la um pouco, Rafael preferiu ir para o quarto ver televisão e o professor ficou na companhia da sujeira dos pratos, talheres, panelas e mesa, além da estressante missão de vigiar o malino Betinho.

As horas se passaram rapidamente e por volta das quatro horas da tarde, escutou-se o som estridente e inconfundível: o “blim-blom” da campainha, Betinho passou correndo em direção à porta, quase atropelando o pai que a abria, gritando:

–– Tia Anaaaaaaaa !

A tia que já entrava na casa carregando uma grande caixa de presente, abraçou o pequenino de forma carinhosa, e lhe disse:

–– Oi, meu querido, como você está, hein? A tia estava morrendo de saudade de você, olha o que a tia trouxe!

–– Um “pesente”, “bigado” tia! –– agradeceu o menino, feliz da vida.

–– Não tem de que, espero que você brinque bastante com ele até gastar as rodas, querido. Agora, abra o presente e veja se gostou.

O menino desembrulhou imediatamente a grande caixa e mostrou em seguida um farto sorriso, um brilho nos olhos arregalados, ao ver o belo caminhão basculante movido por controle remoto. Rafael e Lívia deixaram a televisão e a revista de fofocas, respectivamente, de lado para cumprimentar e recepcionar os tios. Veio, então, Mirtes, um beijo e um abraço apertado na irmã e no cunhado, e, por fim, Alberto:

–– Olá, Ana! Tudo bem? –– o professor cumprimentou a cunhada.

–– Tudo bem Alberto, melhor agora que vejo vocês!

–– E você como vai, Mário? –– Alberto estendeu a mão ao grisalho cidadão.

–– Tudo bem, Alberto! Gostaria de conversar com você sobre algumas coisas de nosso interesse, pode ser?

–– Sim, claro. –– Alberto não tinha mais como fugir da previsível tarde que tanto lastimava.

Ana, Mirtes e as crianças ficaram na sala, entretidos nos mais variados assuntos, vendo as fotografia das férias de Ana e Mário em Ubatuba. Enquanto isso, Alberto e Mário se dirigiram à cozinha e sentaram-se à mesa:

–– Aceita uma cerveja, Mário?

–– Aceito.

Alberto se levantou da mesa, abriu a geladeira e retirou uma latinha de cerveja das que gardava para eventuais visitas, em seguida, pegou um copo com água para beber, raramente consumia bebidas alcólicas, voltou à mesa e sentou-se novamente, Mário iniciou a conversa:

–– Alberto, como é que vocês estão?

–– Estamos bem, Mário.

–– A Ana tem andado muito preocupada com vocês, há noites em que ela nem consegue dormir direito pensando em vocês.

–– Não há motivo –– afirmou o professor.

–– Claro que há motivo, cara! Vocês estão passando por sérios problemas financeiros, não é fácil e nós sabemos disso. As crianças precisam de várias coisas o tempo todo, se eu e a Ana que não temos filhos temos gastos demasiados, pois tudo está pela hora da morte, imagine você e a Mirtes com três filhos para criar. Alberto, você precisa fazer alguma coisa, não dá para esperar mais, as coisas estão cada dia mais difìceis de se conseguir, todo mundo anda à caça de passarinho verde e ninguém acha. Eu quero ajudá-lo, cara!

–– Mário, eu vou ser bem franco com você, pode ser?

–– Claro, Alberto. Eu estou aqui para ouvir você.

–– Quanto à questão financeira, realmente, aqui em casa temos tido muita preocupação, muitas dificuldades, não quero desesperar a Mirtes me lamentando, mas o que posso fazer? Eu trabalho e agora ela também, resta-nos agradecer por estarmos com saúde, infelizmente a situação econômica anda difícil para quase todo mundo.

–– Mas você não deve se conformar com isso, meu! –– disse-lhe Mário e continuou –– Este ano haverá eleições municipais, parece-me que a atual administração está demorando demais para aceitar o PSE na coalizão partidária que fará em São Paulo, estamos conversando com a oposição, o partido não pode perder tempo, além do mais, acredito que a atual administração vai perder a eleição para prefeito na Capital e em outras grandes cidades paulistas, é praticamente certo que o PSE crescerá muito se isso se confirmar nas urnas. Haverá várias reuniões partidárias e eu gostaria muito que você fosse a pelo menos algumas delas comigo, você precisa se enturmar conosco, Alberto.

“Pronto, estava até estranhando que este cara não estivesse ainda falando sobre política. Que cara-de-pau, afirma que o partido troca de lado, dependendo do que for mais vantajoso, sem se sentir nem um pouco envergonhado com isso” –– meditava Alberto, espantado com a naturalidade com que Mário divulgava as artimanhas da política nacional, mesmo assim tentou se esquivar:

–– Talvez eu vá a alguma delas, mas este ano andarei muito ocupado com assuntos da escola. Sabe como é, não sobra muito tempo.

–– Alberto, está na hora de você se mexer, meu! Você tem que aproveitar todas as chances que lhe aparecerem, não dá para esperar mais, entendeu? Estou disposto a ajudá-lo, mas você precisa fazer a sua parte também, entenda que trancado entre quatro paredes lendo ou dando aulas você nunca sairá dessa situação, o governo atual tem a mesma política que tinha o governo anterior quanto ao funcionalismo público, qual seja, esmagar os salários ao máximo, vocês são vistos como os grandes vilões da enconomia nacional, o funcionalismo público, seja em qual área for, é e será durante anos o famoso boi de piranha para despistar as falcatruas e roubalheiras dos nossos goverantes. Você que é professor está sendo afetado por isso sem enxergar. Será que é tão difícil perceber tudo isso, cara!

–– Obrigado pela preocupação, Mário! Mas, se a sua ajuda for esta, eu a dispenso! Volto a afirmar que política não me interessa diretamente e nem será o caminho para a resolução dos meus problemas, sinto muito! ¬¬Política no Brasil deveria significar trabalho e não meio de vida, é por isso que o País vive eternamente arruinado! –– enfezou-se o professor, respondendo ao cunhado com estas palavras secas e ásperas.

–– Desisto, Alberto. Você tem o endereço e o telefone da sede do PSE, quando mudar de idéia ligue ou apareça por lá. Estaremos sempre de portas abertas –– Mário encerrou a conversa, na certa ofendido pela acolhida pouco amistosa que Alberto deu às suas idéias, terminou a cerveja e voltou para a sala. O professor ainda ficou na cozinha, balançando a cabeça, como se não acreditasse nas coisas que ocorrem na política nacional ou tentando pôr as idéias no lugar.

As mulheres e as crianças ainda conversavam ou brincavam na sala, Mário tentou entrar no clima distraindo-se com a diversão do caminhoneiro Betinho. A visita ainda demorou-se por mais uma hora, houve tempo suficiente para o café da tarde e para acalmar os ânimos de Mário e Alberto que, diplomaticamente, ainda se embrenharam por outros enredos. Antes que os ponteiros dos relógios em linha reta acusassem seis horas da tarde, Mário e Ana despediram-se de todos e retomaram o curso rumo ao rico bairro dos Jardins, centro da capital paulista, onde moravam. Quando passavam pela Avenida Nazareth, bem na frente do Museu do Ipiranga, Mário, que dirigia notadamente nervoso e esbaforido, iniciou sua confissão à esposa:

–– Ana, eu adoro passar por aqui, o jardim deste museu é tão bonito, ele faz com que eu me recorde de coisas boas, como quando eu estudei aqui no Ipiranga. É bom passar em frente a um lugar como este quando se está com a cabeça prestes a explodir de ver a imbecilidade de um homem.

Ana fingiu não entender o que ou de quem o marido estava falando e, para despistar a conversa, emendou:

–– Eu também gosto daqui, nasci aqui perto, logo ali na Vila Prudente, mas morei neste bairro por algum tempo, vivi dias felizes no Ipiranga. Gosto de morar nos Jardins, é mais chique, mais sofisticado, mas acho que prefiro o Ipiranga, é um lugar mais a minha cara, mais simples, humano, sei lá.

–– Ana, mudando de assunto, eu nunca mais vou falar de política com o Alberto, nem vou mover um dedo sequer para ajudá-lo, ele se quiser que me procure.

–– O que aconteceu, Mário? –– indagou Ana como se não tivesse percebido o clima pesado entre o marido e o cunhado na casa da irmã, na intenção de pôr panos quentes na confusão.

–– Eu me dispus a ajudar o Alberto, queria vê-lo numa melhor de verdade e o cara dispensou o meu auxílio! Puxa vida, Ana! Eu não sabia que esse professorzinho de meia tigela era tão orgulhoso. Foi tão áspero comigo que tive vontade de ir embora imediatamente, só não agi assim para não estragar a visita que você teve tanto gosto em fazer e em respeito à sua irmã e às crianças que estavam contentes.

–– Você sabe que não é normal que o Alberto tome estas atitudes, ele é um homem super-educado, e eu já havia dito a você que o Alberto não se interessa por política, já há problemas demais na vida dele, não devemos piorar as coisas, Mário. Por que você insistiu? O Alberto é um sonhador, eu sei que viver assim é perigoso demais no mundo em que estamos, não há mais espaço para pessoas que vivam desta forma, elas são engolidas, são tragadas e expurgadas pelo forte poder do dinheiro. Podemos até não concordar com o Alberto, mas devemos respeitar a forma que ele pensa e como ele age, não há lugar para ele no disputado cenário político e para ser sincera, acho que nem para você. Quase todo o campo político está tomado por pessoas interesseiras, existem raras exceções, você é uma delas, é um exemplo, mas todo mundo sabe que a maior parte dos políticos é composta por gente fria e calculista.

–– Ana, não adianta tentar melhorar as coisas, eu não quero mais saber deste cara, tá bem? A Mirtes e as crianças que me desculpem, mas eu desisto. Se você quiser ajudá-los da sua maneira, tudo bem. Mas, a partir de agora o Alberto, o irresponsável do Alberto, que me esqueça! Só irei visitá-lo no hospital ou no cemitério, não quero mais conversa com ele –– dramatizou Mário o máximo que pôde.

–– Tudo bem, você que sabe. Eu posso até não concordar com você, mas respeitarei a sua maneira de pensar, como respeito a do Alberto também. Vocês que se entendam. –– finalizou a conversa Ana, sabendo que o drama de Mário era passageiro, estava tomado de fúria e o sangue italiano, que sempre aparece nestes momentos, logo lhe baixaria da cachola, então ele se esqueceria o que havia ocorrido e tudo estaria bem novamente entre ele e Alberto.

Será?

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Vicente Miranda
Enviado por Vicente Miranda em 16/08/2009
Código do texto: T1756827
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