A cantada perfeita

O rapaz estava ligeiramente sóbrio, o que lhe permitia ainda uma réstia de agudeza. Mas ligeiramente ébrio também, o que lhe impelia a vislumbrar uma certa magnificência, mesmo nas trivialidades. Seu olhar se perdia entre tantos outros olhares caóticos que disparavam em mil direções. A balada é mesmo uma savana, uma arena, ou quem sabe uma mesa de carteado, em que se vence com boa mão ou bom blefe.

Seria sua mão mão boa o suficiente para a rodada? Outros competidores pareciam mais bem municiados. Mas é certo que não estávamos diante de um páreo qualquer.

É muito certo também que essas análises não lhe permeavam as ideias por ora, seu único fito era mostrar seus encantos, ele sabia ser diferente dos néscios que povoam a noite, não é possível que não se visse isso, não é possível que a perspicácia feminina fosse tão rasa. Bastava-lhe um fio de atenção, um mínimo, para mostrar-lhes que aquele reduto se encontrava tomado por ogros.

Mas enfim o horizonte pareceu abrir-se magicamente diante de seus olhos e lá estava ela. Extremamente grave e distante, e singelamente majestosa e só. Uma garota única, uma mulher acima das mulheres, acima da rudimentariedade local, das superficialidades humanas presentes. Enfim um sopro lírico a bafejar aquela Sodoma ultrassecular.

- Você às vezes se sente sobrevoando lugares como este, em que as pessoas se cantam, se falam banalidades, se projetam para além de si mesmas? Sente-se distante e não pertencente a isto aqui, incompatível com essas falas sem freios, lubrificadas de álcool e de vazios abismais?

- ...?

- Não se sente desvalorizada ao ser cotada num mercado de apostas, como tantas outras mais ajustadas a tais circunstâncias, ou seja, vazias igualmente? Você, tão linda e tão lírica, e tão suave e sensível. Estou certo disso, de que esses lindos olhos cadentes perpassam cada desvão deste bar sem contudo desvelar um traço sequer de sutileza nalgum rosto que lhe traduza algo de humano e de ternura em que se possa fiar.

A garota, de fato linda e lírica em toda sua concepção, havia pouco perdida em si mesma, fitava-o languidamente; ele parecia perscrutar-lhe a alma, arejar seus recônditos mais herméticos, soprar-lhe uma brisa de vida, de flores sobre seus vales tão íntimos.

Não eram mais necessárias palavras. Esfíngica, ela recostada na parede, os desejos como que se esgueirando entre duas órbitas... Ele se afasta por um lapso e vislumbra todo o império que agora se parece insinuar diante de si; um gole de saliva lhe mergulha pela garganta.

Um sorriso Humphrey Bogart; uma ajeitada nos cabelos, outro sorriso... Um suspiro e...

- Gostosa!

Um sorrisinho desajeitado e malandro, uma juntada nos cabelos e o beijo quase sedado. Um gole de cerveja, outro beijo, outro gole...

E não se sabe de onde veio nem para onde foi o xucro porém fulminante cowboy, nem nosso lírico porém vacilante sedutor.

Éder de Araújo
Enviado por Éder de Araújo em 22/08/2009
Reeditado em 22/08/2009
Código do texto: T1768574
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