OS MORTOS

A velha cama já está dando mostras de que cederá antes do corpo de seu inquilino. Júlio da Silva, na verdade, é apenas uma imagem. As palavras que porventura escapam de sua boca são como moscas que fogem para não desperdiçar seus poucos instantes de vida. Júlio da Silva é um morto que dispõe de algumas regalias. É um morto com opção para demonstrar seus últimos desejos e pescar no lusco-fusco da memória algum consolo.

Não sinto pena alguma de Júlio da Silva. Se às vezes, saio do seu quarto, não é por remorso ou aflição. Saio, porque a sua atmosfera me deixa nauseado. Ainda não me acostumei a essa sensação de túmulo que seu aposento gruda em mim. Por sorte, meu coração está a salvo de sentimentalidades. Não consigo odiar nem amar Júlio da Silva. O seu último abraço me deixou apenas fatigado.

A grande ambição de Júlio da Silva era me proporcionar um futuro digno.

- É para o seu próprio bem, ingrato!

Herdei dele a veia da ingratidão. Admito que não são muitas as minhas qualidades. Faltou-me um espelho. Júlio da Silva não soube me transmitir nada de seu. Os seus olhos nunca foram muito dados aos meus. Talvez, foi um erro do destino, amarrar assim duas criaturas tão disformes. Não merecíamos dividir nem ao menos uma cidade, quanto mais uma vida!

Suponho que no dia em que Júlio da Silva amou minha mãe, não estava consciente que sairia algo errado. Júlio da Silva não é culpado. O erro foi eu ter me precipitado em meio a milhões de pares e buscar desesperadamente uma saída. Sempre tive vocação para a insatisfação. Júlio da Silva foi meu pai por 35 anos e nunca estivemos próximos, excetos nas tediosas fotografias e festas de aniversário.

Ainda há pouco, dei o seu remédio. No fundo, desconfio que os olhos do sujeito que está ali jogado na cama querem me revelar algum segredo, mas sempre lhe faltou o dom da coragem. Herdei a covardia dele. Com a convivência, fui aperfeiçoando. Suponho que se pudesse, ele me olharia nos olhos pela primeira vez e me revelaria talvez o segredo que sempre sonhei ouvir um dia:

- Olha aqui, rapaz, sabe, isso é tão difícil de dizer... Diabo! O fato é que não sou seu pai. Me perdoe.

Sinto vergonha de admitir que essa seria a sua única forma de conquistar o meu perdão. Júlio da Silva está à beira de uma viagem e seguirá sem ter o meu perdão. Talvez não precise dele. Mesmo assim, pagarei todas as despesas e lhe darei um enterro digno. Discreto, mas preservarei a tal dignidade familiar. Convidarei todos os seus poucos amigos. Espero que venham preparados para chorar, porque mesmo me esforçando, não me sinto capaz de libertar uma única lágrima pela passagem de Júlio da Silva.

A minha maior angústia é vê-lo definhar-se dia após dia, sem uma definição. Ontem mesmo, pensei que não mais o veria com os olhos abertos. A sua crise despertou em mim pela primeira vez o que é a morte. Em 35 anos de vida, vi a morte de perto pela primeira vez. Não a achei tão assustadora. Estava preparado para recebe-la, não como uma inimiga, mas como uma libertadora. A morte de Júlio da Silva me devolveria um pouco de vida. Tantos anos perdidos! Sem ter o direito de tocar a minha triste vida pelos trilhos tortos e enferrujados da existência. Nunca achei a vida atraente, mas sinto a necessidade de gasta-la à minha maneira. Acho que já paguei a minha dívida para com Júlio da Silva. Que ele me deixe viver em paz. Ou ao menos, sozinho.

Na semana passada, senti remorso quando me chegou a conta da farmácia. O pior é que as minhas economias se foram todas e Júlio da Silva não se resolve. Às vezes, sinto um desejo tão grande de ir com ele, mas só a possibilidade de estarmos juntos em outro plano existencial, e por toda a eternidade, me causa calafrios. Preciso me distanciar dos pensamentos sobre morte. Mas ela está desenhada em todos os detalhes do corpo de Júlio da Silva. Seu quarto é um culto ao anjo da morte. Posso visualizar em cada móvel o brilho da foice e o gorro pendurado sobre o abajur.

Já senti por vários dias, a necessidade de apressar o serviço. Afinal, é uma questão de tempo. Sua doença é irreversível. Não sei como esse maldito homem resiste tanto. Talvez por birra ou para me chatear e punir ainda mais.

Hoje, cancelei um encontro para não deixa-lo só. A sua companhia me deixa doente. A lanterna dos seus olhos, sempre fixados no chão me desperta para uma ameaça de solidão monstruosa. Não trocamos palavras. Mesmo quando Júlio da Silva sentir chegar o seu momento, não sei se meus ouvidos vão querer se alimentar com suas últimas palavras. Vou dormir. Estou muito cansado. Não consigo mais voltar ao quarto cavernoso e me deparar com a agonia de Júlio da Silva. A morte parece brincar com a minha aflição. Desconfio que Júlio da Silva é um espião e joga baralho com a morte, enquanto eu estou dormindo. Devem zombar de mim, enquanto bebem à saúde de Júlio da Silva.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 23/08/2009
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