A sala

O nada destes nadifúndios não alude ao infinito menor de ninguém

(Manoel de Barros)

Agora que conhecia a casa, voltar seria uma delicadeza.

Ela que tem os gestos vulgares de quem sabe que o gás e,

- provavelmente - o amor podem acabar amanhã. Ele que tem a insistência de quem se atira num abismo. Ambos sentados á mesa na sala sem luz. Não eram amantes. Não, ao menos, naquela sala triste. Não eram seus moradores. Eram estrangeiros: ele na vida dela; ela na própria vida. Não trouxera ele nada nas mãos: sabia que qualquer coisa seria demasiado para quando seus dedos vacilantes tocassem o que ela deixou na caixa agora esquecida no armário que cuspia cupins.

Os ruídos da casa queriam convencer que a vida segue indiferente às batidas do coração. Mas a presença daquele homem quase nu, chorando velhas lágrimas embalsamadas, provocava a sensação que não, ao contrário: que o coração é o heróico ditador do tempo: sem esquecer os nomes das feridas, desce pelas sombras dos dias a lugar nenhum, e só depois e então, sim sim, narra com voz rouca.

- O quê?

Os ônibus deixavam tanto barulho ao transitarem pelas ruas sem cores que não era possível que ele ouvisse quando ela dizia

- O quê?

- Digo o que digo e tens razão quando não me escutas, está escuro e meus lábios estão secos. E além do mais não me deves nada para que se preocupes com o que eu digo, para que me escrevas longas cartas falando da sua gratidão. Assim te liberto da escravidão de voltar pros meus olhos.

Como é que ele entrou ali? A coragem de amar, esperar durante meses, de pé, gaguejando noites num céu sem estrelas. Procurava no prato vazio a fome para comer todo o negrume da palavra sem verso. A execução da língua que falava, (Diziam que a mesma que a dela) ou melhor, que ele escolheu como pátria, excedida (Mas é preciso considerar que cada qual tem sua linguagem, e o que faz a comunicação é, arrisco, a linguagem, mais que a língua) nos efêmeros discursos amorosos. (Porque eles queriam se comunicar, por isso insisto nisso de língua e linguagem. Nâo me creiam excessiva. Eu no mundo sou exígua, mas tenho minha linguagem, assim que vou sendo enquando me nomeio, e posso ser até não ser mais e assim ser cada coisa que posso chamar pelo nome). Ela entrou nesse momento em que o invisível é a paisagem que balança nas árvores.

- Mastiga a tristeza desses pássaros voando porque não têm ninho, que eu, sentindo menos dor, lavo-te o rosto com alecrim - disse distraído olhando pela janela. Mas ela tinha cansaço demais no corpo para beijar entre os dias a promessa de um amor:

- Aqui, se o horizonte fosse feito de azul, ainda não se canses do meu cansaço, nós sairíamos com bocas líricas para soprarmos borboletas grávidas de vento. Aqui. Porém antes preparo sua partida para cinco minutos, e quando chegar, acendo as luzes dos lugares onde nunca estarei e espero que nunca voltes sentada no frio assento da solidão e invento um mar diametralmente oposto à obscenidade da sua imagem.

Eles, não gosto de dizer eles, é que isso os une falsamente, fatalmente (A linguagem tem tantas armadilhas!!! ...), por isso opto por ele e ela, ou ainda, ela e ele (que a linguagem tem tantas armadilhas!!!...) ainda que resulte enfodonho. É uma opção conceitual mais que estética, entendam. Ele e ela ou ela e ele ou se prefirem ela e ele primeiro e depois ele e ela como opção (é que a linguagem tem tantas armadilhas) não sabiam por onde começar a viver, então resolveram se amar. Nâo é tão simples assim, mas eu sou somente um narrador, que ainda que onisciente, isso me permite fazer certas intromissões em 1ª pessoa, ou seja, falar como eu mesmo, explicar, melhoro, interpretar a história, mas que fique claro: se eu sei tudo sobre os personagens, eu não sei mais do que eles e eles não sabem mais do que isso, de modo que temos um limite. E se estou chorando, informo que estou chorando, só informo, interpreta vocês os motivos, que eu tenho uma história, tão triste quanto um piano sem cordas, para narrar. Então, sem minúcias e sem dicionários pra esclarecer as dúvidas, digo que só lá dentro, com vermes nadando no ventre, existe a coisa viva. (Ainda que o dentro não seja dentro, e se isso é mais um problema de linguagem, esse é invencível, e se for um problema conceitual, também é invencível porque esse depende da linguagem).

Tudo que se inicia, inicia quando o silêncio vira palavra. Assim somos fronteiras até tatearmos a terra de nascer sonhos. De fato não tinha luz naquela sala, estragara o ordinário interruptor e vontade que o arrumasse. E eu, que não entendo nada de interruptores, não posso fazer mais que narrar o que vejo. E vejo uma sala vazia, sem luz e um homem e uma mulher que nunca estiveram ali, talvez quando, pouco a pouco, fosse se criando a pergunta, minúsculos insentos, juntos com a luz, entrassem pelos vãos. E ela e ele, sem alegria, sentiriam o cheiro ácido do dia e voltariam com o sol.

Carla Carbatti
Enviado por Carla Carbatti em 27/08/2009
Reeditado em 03/09/2009
Código do texto: T1778200
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