O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo VI

Anunciação

Trá - trá - trá - trá - trá... trá - trá - trá - trá - trá... A máquina de costura não pára, ela não pode parar, muito menos a mulher que está à frente dela no comando de intermináveis movimentos mecânicos e repetitivos. E mesmo que a exaustão, o cansaço e o sono tentem exaurir as forças da costureira Mirtes, ela não se entrega, ela não pode se entregar. Trá - trá - trá - trá - trá... As cansativas vinte e quatro horas do dia chegaram ao fim, e já passava da uma hora da manhã de um novo dia, na certa seria outro dia cheio de tarefas, a dedicada costureira estava na oficina desde que Betinho dormiu por volta das vinte e duas horas. Mirtes, quando saiu do local de trabalho naquela noite, dirigiu-se ao quarto em busca de uma blusa, a temperatura havia caído demais e o frio comprometia os movimentos de suas mãos e de seus braços, precisava de algo que a aquecesse. Havia feito muito frio nas noites anteriores àquela, e a previsão do tempo havia informado que o vento gelado, a garoa e o clima de inverno estender-se-iam por mais alguns dias e, realmente, aquela noite do fim do mês de junho estava fria demais. Quando entrou no quarto viu que Alberto dormia profundamente, abriu o guarda-roupa e pegou a blusa, vestiu-a sobre a camisola –– “Pronto. Assim está melhor” –– comentou bem baixinho para não acordar o marido, depois disso, voltou à oficina e aos intermináveis fardos de tecidos que tinha pela frente, desde então, ela não havia mais arredado o pé dali.

Como é duro ignorar a necessidade de repouso quando o cansaço do corpo e da mente esgota as últimas reservas de energia da fragilizada máquina humana. O sono, por vezes, tentava derrubar Mirtes que bocejava cada vez mais, porém ela sabia da importância e da necessidade que significavam aquelas noites e madrugadas que se passavam sem que ela dormisse, sem que ela se desse ao luxo do descanso restaurador noturno, se não fosse o dinheiro extra levantado à custa de seu trabalho e esforço, teria sido impossível a sobrevivência econômica familiar naquele difícil final do ano 2003, o que ela conseguiu ganhar, somado ao salário limitado do marido, havia contribuído para o pagamento de muitas contas e, com isso, manteve-se a reputação e o crédito financeiro da família na praça, é bem verdade que no fim do mês nada sobrava, mas conseguiam desta forma pagar os valores mensais mínimos exigidos pelos cartões de crédito sem extrapolar o vermelho das contas bancárias, muito embora sobrevivessem sempre com a corda no pescoço. O pior de tudo eram os juros mensais que tinham que ser pagos pelo uso do dinheiro emprestado de bancos e financiadoras –– “Ah! Os juros, como são cruéis, andam pela hora da morte” –– lembrava-se a costureira.

Mirtes sabia que a situação econômica familiar ainda era extremamente grave e se fosse necessário que ela não dormisse para ficar todas as noites em frente à máquina de costura, para melhorar a saúde financeira da família, assim ela o faria, não havia outro jeito.

Trá - trá - trá - trá - trá... trá - trá - trá - trá - trá... Duas horas da manhã, a costureira sente que o corpo não ajuda mais, as mãos estão trêmulas e os braços doem demais, aquela era apenas mais uma madrugada entre tantas outras que já havia passado sem descansar, era uma rotina de cão, o que a cansava também era o acumulo de tarefas em casa –– “Ah! Os serviços domésticos. Como são cruéis” –– durante o dia lavava roupa, limpava a casa, fazia almoço, preparava o jantar, lavava louça, passava roupa, eram tarefas intermináveis e, ainda que Alberto a ajudasse bastante pela manhã, praticamente a responsabilidade por todas as tarefas restantes sobrava para ela, quase não conseguia costurar uma única peça de roupa durante o dia, restavam-lhe apenas as noites para dedicar-se integralmente à costura.

Duas e quinze da manhã, Mirtes não podia se entregar ao sono para não atrasar o beneficiamento de que o patrão tanto precisava. Pensou em uma maneira de driblar o sono que a cada instante vinha mais forte teimando em desacordá-la. Decidiu ligar o rádio do micro-system que mantinha na oficina para se distrair, chateou-se com os mesmos comentários que ouvira durante o dia, desligou o rádio –– “Chega de notícias ruins! Acho que prefiro ouvir uma boa música” –– pensou. Saiu da oficina e foi até a sala procurar um CD de que ela gostasse bastante, vasculhou os discos de MPB do marido, o professor adorava MPB, e ela também, deparou-se com um CD do Alceu Valença –– “Eu amo as canções do Alceu Valença” –– voltou à oficina, pôs o CD para tocar e, logo, a belíssima musicalidade e poesia da canção “Girassol” preencheu o ambiente, praticamente ritmada e invadida pelo mecânico barulho da máquina de costura:

“ Mar e Sol /Gira, gira, gira, gira, gira, gira, gira, girassol”

Trá - trá - trá - trá – trá – trá – trá – trá – trá – trá...

“Mar e Sol /Gira, gira, gira, gira, gira, gira, gira, girassol”

Trá - trá - trá - trá – trá – trá – trá – trá – trá – trá...

“ Um girassol nos teus cabelos” (trá – trá – trá – trá – trá...)

“ Batom vermelho, girassol” (trá – trá – trá – trá – trá...)

“Morena flor do desejo” (trá – trá – trá – trá – trá...)

“Há teu cheiro em meu lençol”...

Enquanto todos na casa dormiam, Mirtes costurava, viajava nas canções e pensava em cada membro da família: Betinho crescia forte e saudável –– “Graças a Deus” –– aliviava-se a mãe, embora, para acompanhar o elétrico menino durante o dia era necessário um dispêndio de energia indescritível, Mirtes já preparava o pequenino para frequentar a escola em 2005; Raphael mantinha-se bem na escola, conseguia sempre boas notas, apesar de que Mirtes dificilmente o visse estudando em casa –– “Será que vive na escola à base de cola na hora das provas?” –– indagava a preocupada costureira com a educação do filho mais velho –– “Acho que não”. –– Via com o passar dos anos, Raphael tornar-se um rapazote lindo, alguns namoricos, as meninas da escola e do bairro não o perdiam de vista, mas o mancebo ainda era um menino, muitas vezes nem percebia o flerte das meninas que suspiravam ao vê-lo, tinha por companheiro os amigos da escola e um skate que o acompanhava nos finais de semana, coisas de adolescente; e Lívia transformou-se em uma mocinha bonita, alegre e vaidosa, demorava um tempão no banho e depois horas e horas na frente do espelho para cuidar dos cabelos e decidir a roupa que iria vestir, gostava de comprar xampus e perfumes, mas em matéria de estudos era muito aplicada e responsável –– “Acho que isso ela puxou do Alberto, Lívia gosta demais de ler” –– lembrava-se admirada pelo empenho nos estudos da filha. Lívia também adorava passear com as amigas e ouvir música, porém, se havia trabalhos ou provas escolares iminentes, a menina desistia da diversão e se dedicava integralmente aos estudos.

Trá - trá - trá - trá - trá... Mirtes pensava agora em Alberto. Trá - trá - trá - trá - trá... Havia noites em que o marido perdia o sono durante a madrugada e, enquanto ela trabalhava na oficina, ele ficava na sala lendo sob a luz do abajur ou a verificar e corrigir provas e trabalhos escolares, às vezes ia até a oficina fazer companhia para ela, conversava um tempão sobre as crianças e sobre as coisas da vida, gostava de comentar os assuntos da escola: alunos, professores, avaliações, muitas dificuldades, mas algumas alegrias também. Esta madrugada, porém, o professor não havia acordado, dormia profundamente, estava muito cansado, para Mirtes sentia falta da companhia do marido. Trá - trá - trá - trá - trá... Alberto, ultimamente, como se fosse um bálsamo para acalmá-lo dos assuntos e aborrecimentos como os problemas de ordem financeira, alegrava-se quando falava sobre um aluno que ele conhecera chamado Cléverson, praticamente em todas as madrugadas este aluno era motivo para o professor iniciar uma conversa com a esposa, o professor o considerava um aluno especial e exemplar, dizia que o jovem aluno morava na favela do Heliópolis, bairro próximo do Ipiranga. Cléverson durante o dia, quando não estava na escola, vivia nas ruas à procura de papelão, plásticos e materiais recicláveis, e apesar de todos os problemas e dificuldades do mundo pesando-lhe sobre as costas, o menino contrariava as tristes estatísticas sociais e não desistia de estudar, era muito educado e um dos melhores alunos da classe, Alberto descrevia essas coisas para ela citando o menino como um exemplo de esperança e vida. Trá - trá - trá - trá - trá... Mirtes lembrou-se de que alguns meses atrás, o professor havia comprado alguns livros: gramática, dicionário, paradidáticos etc., além de cadernos e canetas para dar ao menino –– “Paguei com o cartão de crédito, dividi em cinco parcelas. O Cléverson merece, Mirtes, ele é um menino que precisa somente de incentivo, eu tenho orgulho de ter um menino assim como aluno” –– disse-lhe Alberto na ocasião. Ela não quis contrariar o marido, era uma situação delicada, daquelas em que apenas as pessoas envolvidas diretamente nela, sabem entendê-la e, mais, se estivesse no lugar do professor, certamente faria o mesmo. Trá - trá - trá - trá -trá... –– “Alberto é um homem muito bom, bom demais, ele tem um coração enorme” –– desta maneira Mirtes definia o marido em suas lembranças, para ela e para muitos não havia melhor definição, o professor era uma pessoa simples, mas muito caridosa. Trá - trá - trá - trá - trá... Mirtes se lembrava agora com carinho das madrugadas em que o professor se levantava do sofá e ia correndo até a porta da oficina –– “Mirtes, ouça esta poesia, ela é linda” –– e recitava o poema para ela –– “Realmente é linda, Alberto, parece que foi escrita por ...” –– arriscava o autor e, às vezes, –– “Acertou, Mirtes. Você está ficando boa nisso, hein” –– assim era o professor. Havia ocasiões em que lia para ela algum trecho de livro ou algum trabalho escrito por alunos do qual se admirava, Alberto adorava o contato com as letras e ela adorava a companhia de Alberto, como a companhia do marido fazia-lhe falta naquela noite interminavelmente fria. Trá - trá - trá - trá - trá... Trá - trá - trá - trá - trá...

Duas e meia da madrugada. Trá - trá. Mirtes sentiu sede, foi à cozinha, tomou um pouco de água e aproveitou para vasculhar mais uma vez os dormitórios da casa, notou que os filhos e o marido continuavam a dormir, sentiu inveja de todos eles, àquela altura da madrugada o sono a incomodava bastante, os olhos que ela não parava de esfregar pareciam ter areia. De volta à cozinha, decidiu preparar um café na tentativa de se manter acordada, pôs um bule com água no fogão. Enquanto a água esquentava, Mirtes retornou à oficina para não perder tempo. Trá - trá - trá - trá - trá... Dez minutos de costuras depois, Mirtes, novamente na cozinha, coou o café, adoçou-o e sentou-se numa das cadeiras da mesa com o bule e uma xícara nas mãos. O pensamento da costureira divagava agora nas problemáticas questões financeiras da família, enquanto ela punha o café na xícara e queixava-se em silêncio –– “Deus do céu, por que essa situação não melhora nunca, não estamos aguentando mais tanta privação, tanto sufoco” –– e continuava –– “O coitado do Alberto anda tão preocupado que dorme irrequieto, mexe-se na cama a noite inteira, eu trabalho feito um relógio e, mesmo assim, o dinheiro é sempre contado. Quando será que esta insustentável situação vai acabar? Quando?”

Mirtes degustou o café –– “Hummm, ficou bom”. –– De repente, sentiu uma corrente de ar frio penetrar no ambiente, estranhou o calafrio repentino que arrepiou o seu corpo inteiro, mas ponderou –– “talvez a janela da dispensa esteja aberta”. –– Foi até a dispensa que ficava entre a cozinha e a oficina e notou que a janela não estava aberta, estava tão fechada quanto todas as outras janelas da casa. –– “Deve ser esta mudança de clima, vai ver que está esfriando mais ainda, o tempo anda tão maluco ultimamente” –– ressaltou. Voltou à cozinha ainda com a xícara na mão, apoio-se na pia tomando o café devagar, saboreando cada gole, preferiu não se sentar para não perder mais tempo. Quinze para as três da manhã. Da cozinha, Mirtes ouvia as músicas que tocavam na oficina, e o marcante solo de guitarra da música “Anunciação” do Alceu Valença pulsava definitivamente aguardando a perfeição dos versos da poesia que aos poucos ia se desencadeando:

“A bruma leve das paixões que vêm de dentro

Tu vens chegando pra brincar no meu quintal

No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento

E o sol quarando nossas roupas no varal

Tu vens, tu vens

Eu já escuto os teus sinais...”

Estranhamente, Mirtes sentiu novamente aquele calafrio percorrer-lhe o corpo, da ponta dos pés até a cabeça, parecia uma geladeira aberta na frente dela, não conseguiu mais desencostar-se da pia e, enquanto segurava a xícara ainda entre as mãos, ouviu nitidamente uma voz que falando ao seu ouvido parecia misturar-se ao vento e diluir-se no ar: –– “Mirtes, minha filha, ouça o que tenho a lhe dizer. O dinheiro na sua vida não lhe trará felicidade nenhuma, ele significará apenas discórdias e despedidas. Lembre-se sempre destas palavras e que Deus a abençoe”.

A xícara soltou-se das mãos de Mirtes espatifando-se no chão, a mulher deu um grito ensurdecedor, ficando em seguida durante algum tempo sem conseguir pronunciar qualquer palavra. Alberto levantou-se rapidamente e foi à cozinha socorrer a esposa pálida e imóvel, abraçou-a bem forte, levando-a para a cama. As crianças abriram as portas de seus quartos, haviam acordado assustadas, e Lívia quando viu que o pai saia de novo do quarto em direção à cozinha para pegar água com açúcar, perguntou a ele:

–– Que aconteceu, pai?

–– Nada, minha filha, a sua mãe deve ter tido um pesadelo, mas voltem vocês todos para os seus quartos e durmam. Está tudo bem.

As crianças obedeceram. Alberto foi à cozinha recolheu os cacos da xícara, limpou o chão, pegou o copo com água e açúcar, desligou as luzes e voltou para o quarto, deu água com açúcar à esposa, que de olhos arregalados ainda não havia conseguido dormir.

–– O que aconteceu, Mirtes, você teve um pesadelo?

–– A... minha mãe, Alberto... ela veio me visitar...

–– Você está maluca, Mirtes? A sua mãe morreu faz mais de dez anos.

–– Alberto, eu nunca senti a presença dela de forma tão real em toda a minha vida. Eu estava me lamentando em pensamento da falta de dinheiro, e ela, parecendo que me ouvia, disse que a presença do dinheiro não me trará felicidade nenhuma. Foi como se ela estivesse na minha frente e eu não pudesse enxergá-la, tocá-la, mas pude ouvi-la perfeitamente.

–– Está tudo bem agora, querida. Eu acho que você está cansada demais, isso faz qualquer pessoa delirar, é preciso que você durma mais, você precisa descansar. Você precisa dormir, mais tarde a gente conversa melhor.

Enfim, a escuridão e o silêncio da madrugada. O professor dormiu quase que instantaneamente, aos homens parece faltar uma sensibilidade maior para determinados acontecimentos, são sempre as mulheres que sonham mais, que entendem mais, que pressentem mais os acontecimentos. E Mirtes não estava sonhando, ela sabia disso, tinha certeza absoluta. É indescritível o que havia ocorrido, mas ela estava acordada. Mesmo que não houvesse entendido aonde a mensagem da mãe morta pretendia chegar, Mirtes continuou acordada por mais alguns minutos com os olhos arregalados para a escuridão do quarto, esperando que o fato se repetisse, agora ela não teria mais medo, não ficaria apavorada diante do invisível, era a sua mãezinha querida, Mirtes estava certa disso, mas logo o sono veio acalentar o seu cansaço porque há coisas que acontecem apenas uma vez na vida.

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Vicente Miranda
Enviado por Vicente Miranda em 30/08/2009
Código do texto: T1782681
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