A lição

De onde veio sua descrença? Muito é dito. A mãe atesta que veio da escola, para a qual tanto estudou ciência, e os ex-colegas complementam testemunhando que sempre fora ele o nerd da turma. Já o irmão mais velho, possui a certeza de que a semente foi germinada na inevitável revelação de que Papai Noel não existe, teria isso culminado em um caminho niilista sem volta. Alguns vizinhos alegam que o ponto influenciador marcante encontra-se nas músicas que costumava ouvir aos quinze anos. Como se vê, indagações não faltam. O certo é que, dado momento, todos já identificavam Fernando como ateu, cético, livre-pensador.

De filosofia ele tudo entende, muito reflete sobre a vida e o universo, almoça Platão e janta Nietzsche. Em ciências naturais é expert, inspira cada fórmula da cinemática escalar e expira cada polissacarídeo da bioquímica. Em ciências humanas também não fica para trás, seu profundo conhecimento sobre história e geografia reflete-se claramente quando debate sobre o impacto social de um possível investimento cultural. É freudiano assíduo, psiquiatra por profissão. E engana-se redondamente quem supõe dele ignorância em teologia, pois também de teologia ele entende, e nos momentos mais oportunos, cita preceitos religiosos como se fosse um praticante. A convite, nunca recusa sua presença em cerimônias wiccas, católicas, budistas, judaicas...

Um terreiro, porém, é onde, talvez, ele nunca tenha pisado até hoje. Diego, seu principal amigo de infância, não tardou a notar que Fernando era mais um irmão, ou seja, que assim como ele, também era filho de Oxalá. Ao ser alertado, no entanto, sobre sua condição, Fernando, de imediato, riu-se passionalmente e pronunciou, da maneira mais tranqüila possível, que não acredita em algum Oxalá existente, num tom tal que parecia até que ele estava dizendo sua pizza preferida, ou olhando as horas, ou dizendo seu nome ao se apresentar a alguém. Que blasfêmia! Absurdo maior é o fato de que raramente se veste de branco e de que já foi visto inúmeras vezes ingerindo dendê em dia de sexta-feira. Como pode alguém afrontar assim o próprio orixá? Não fora uma nem duas vezes que seu amigo o aconselhara a mudar de comportamento, mas não adiantava, o leviano blasfemador fazia valer seu nome – haverá nesse mundo tantos outros fernandos?

Durante anos a fio, ninguém via Fernando incorporado. Seria Oxalá capaz de tomar seu infiel, como tomava Diego, apesar de ser esse infiel tão forte e destemido? Caso fosse, por que não o fazia? Por que não o ensinava a respeitá-lo? Por que permitia tão insano comportamento, palavras pronunciadas por tão insana boca? Por que não tomava uma providência sobre aquele filho que tantas vezes renegava sua identidade?

Pois um dia ocorreu. Arquivos do ano passado estão repletos de reportagens sobre esse dia, 2 de fevereiro de 2006. Os jornais deram conta de toda a festa que era dedicada a Yemanjá, desde a abertura do festejo até o raiar da madrugada, quando os últimos transeuntes já se encontravam desgastados pelo agito do dia anterior. O que ninguém reportou, ou o que poucos notaram, foi a discreta participação de Oxalá na comemoração. Estivera ele também no Rio Vermelho para saudar sua digníssima ex-esposa, à beira do mar, em um pequeno e perigoso rochedo.Quando Oxalá chegou, Diego sentiu prontamente sua presença. Fernando estava ao seu lado, contemplava a festa, admirava o baticum e a cantoria. Antes que Oxalá se fizesse presente, Diego percebeu que algo o desagradava, que alguém ali precisava aprender uma lição, e fazia-se imediata a necessidade de aplicá-la.

Não demorou para que o sorriso de Fernando tomasse um caráter peculiar – não dele – e que seus movimentos denotassem alguma sensação vibrante. De repente, o corpo de Fernando começou a balançar ao som da música, e quando menos esperavam, destacava-se de todos, a dançar. Dançava forte, pulava e trocava as pernas, voltava-se de um lado para o outro em questão de fragmentos de um segundo. E saudava Yemanjá, dava a todos o grande exemplo: Odoyiá! E apesar de todo aquele agito sobre um pequeno e perigoso rochedo, à beira do mar, em nenhum momento Fernando perdeu o equilíbrio. Se caísse, o desastre seria fatal, mas Oxalá não é assassino.

Ninguém duvida de que naquele dia, Yemanjá sentiu-se amada e satisfeita. Porém, uma hora a festa acabou, como teria de acontecer. Diego, ao voltar para casa, argüiu Fernando e perguntou-lhe se havia aprendido a lição. Que lição, ora essa? Fernando não compreendia. O amigo de infância, irmão de santo, relatou-lhe tudo o quanto havia se passado: a presença de Oxalá e seu incômodo, a incorporação, os risos, a dança, a saudação que servira de exemplo naquela festa. Fernando não reagiu como Diego esperava. Apenas soltou aquele velho riso tranqüilo, redargüindo:

– Ô, Diego! Você é batalhador e insistente mesmo. Um dia você me convence.

Nada tinha mudado. Por que tudo aquilo, então? Se Fernando não aprendera lição alguma, se ainda era descrente, se continuaria a não se vestir de branco e a ingerir dendê nas sextas, e se continuaria a declarar a inexistência do próprio orixá quando solicitado algum posicionamento, de que servira então a incorporação? De que adiantara Oxalá tê-lo tomado? Qual seria a explicação? Talvez não houvesse explicação alguma. Talvez o poder de Oxalá não fosse suficiente para ensinar algo a Fernando.E ao pensar nisso, Diego deu-se conta de que pela segunda vez duvidava do poder de Oxalá. Recentemente, vinha supondo que ele não era capaz de incorporar-se em Fernando, tantas afrontas recebera do mesmo sem reagir, e agora, constatando que seu amigo de infância continuava o de sempre, novamente desvirtuava sua própria fé. E deduziu, decepcionado consigo mesmo, que se pensava ser a descrença de seu amigo intolerável, mais ainda o seria aquela sua crença incompleta, aquela fidelidade desencaminhada.

Foi então que, subitamente, Diego viu-se diante da explicação: ao incorporar Fernando, Oxalá mostrara que era sim capaz de fazê-lo, e ao manter os pensamentos de Fernando intactos, mostrara também que dava àquele infiel total liberdade para manter-se como tal, era o seu livre arbítrio e a ninguém cabia julgá-lo. A lição de Oxalá não era a Fernando, mas a Diego destinada.