O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo VIII

Ressaca eleitoral

Triiimmm... Triiimmm... Triiimmm...

–– Dona Sônia, eu não estou para mais ninguém hoje! Entendeu?

–– Sim, dr. Tavares.

O doutor Tavares, ou melhor, Antônio Lúcio Tavares, presidente nacional do PSE, doutor não se sabe em que, levantou-se de sua confortável cadeira e fechou a porta de sua sala, não queria ser incomodado pelo insistente barulho dos telefones que vinham da recepção, enquanto conversava:

–– Se esse dinheiro não chegar logo, não sei o que faremos. Não aguento mais ouvir esses telefones que tocam sem parar, acabei de desligar todos os meus celulares. As eleições acabaram e os nossos candidatos precisam cobrir as dívidas que foram feitas. Esse dinheiro é mais esperado que nunca, Mário. Se ele demorar mais um pouco para vir, os candidatos vão me matar, não sei mais o que digo para acalmá-los, tenho vontade de passar umas férias na lua.

–– Tavares, Tavares... Calma Tavares. Desse jeito você enfarta, meu nego. Eu estive com o doleiro hoje cedo e ele me garantiu que metade da grana estará em nossas mãos até o fim desta semana. Hoje é terça-feira, lá pra sexta cinquenta por cento da grana já estará disponível.

–– Metade? E o resto, Mário?

–– Não se tem garantia nenhuma do restante do dinheiro. Você sabe como são essas coisas, né? O dinheiro dá uma volta enorme para chegar limpo aos cofres do PSE, durante este trajeto perde-se uma boa parte dele pelo caminho.

–– Tudo bem, mas perder metade é demais. Que roubo! Não se pode confiar mais em ninguém, ainda mais nesse doleiro ladrão que você arrumou para o partido. São muitos os candidatos do PSE que precisam saldar as dívidas que fizeram durante as campanhas, não há como esperar mais, já estamos na metade de dezembro, Mário. Está demorando demais! Os cobradores batem nas portas dos candidatos do PSE todos os dias. Foram milhares de santinhos, camisetas, chaveiros, churrascos, canetas, shows, artistas e etc... etc... etc...

–– Tavares, o PSE tem uma pífia representatividade aqui em Brasília, são apenas dois senadores e vinte e seis deputados, com esse número não dá pra brigar por nada. Precisamos fortalecer o PSE no cenário federal, eu soube por intermédio de um colega, um deputado federal de meia-tigela pertencente a um partido que faz oposição ao governo, que há um esquema na alta cúpula federal enchendo os cofres de alguns partidos da oposição para que o governo consiga maioria no Congresso Nacional, enquanto isso da gente ninguém se lembra. Entende, belo? O PSE ainda não tem poder de fogo no lugar certo, nosso partido não faz nem cócegas no governo federal, é muito pouco ainda, por isso estamos sempre puxando o saco do presidente da República e continuamos com as nossas dificuldades. Está errado, Tavares. Nós temos que partir pra cima do governo também.

Mário acendeu um charuto cubano e, depois de uma bela baforada, continuou:

–– Esfria a cabeça, Tavares. Paciência. Você se preocupa a toa, maninho. Em política tudo é relativo, nada é definitivo. Abra o jogo com o partido. O PSE deve bancar primeiro os candidatos eleitos, principalmente os prefeitos que fizemos nas capitais do País, são eles que trarão dinheiro para os nossos cofres, depois disso, o que sobrar, se sobrar alguma coisa, vai para os candidatos derrotados. Quem sabe não pinta pelo caminho mais algumas doações para a próxima campanha e tudo se resolve. Veja bem, eu saí de São Paulo e vim até aqui, em Brasília, para ajudar você a resolver este problema dentro do PSE e acho que a única solução que nós temos é esta, não temos outra.

–– Mário, você é politicamente genial. É bom ouvi-lo antes de tomar qualquer decisão. Você tem toda razão. Vou abrir o jogo e dizer que primeiro receberá quem ganhou, depois os outros. Assim é mais justo.

–– Ainda bem que você não é mais aquele cabeça dura que eu conheci. Este partido precisa crescer. Nós não temos nomes fortes e competitivos para as eleições estaduais e federais de 2006, o PSE precisa trabalhar rápido senão a coisa desanda, não podemos ficar sempre com o chapéu na mão vivendo de esmolas, vamos pra cima. Eu acho que esta é a hora para o PSE criar um canal de diálogo com o País. Primeiro precisamos encontrar um marqueteiro bom e, depois, vamos até onde Judas perdeu as botas atrás de apoio, dinheiro e votos para a próxima eleição. A hora é essa, Tavares, quanto mais cedo melhor.

–– Eu assino embaixo tudo o que você disse.

Mário acompanhava os movimentos de Tavares e ao mesmo tempo lembrava-se de que metade do dinheiro, que motivava a preocupação do velho presidente do PSE, já havia sido surrupiada por ele: “Tavares, Tavares, Tavares... O mesmo idiota de sempre. Você nem desconfia que metade dessa grana já está no meu bolso, ou melhor, nas minhas contas clandestinas... Metade dessa grana é minha, trouxão”. Tavares jamais imaginaria que Mário, o melhor articulador político do PSE, já havia embolsado a metade do dinheiro que serviria para saldas as dívidas de campanha do partido.

–– Mário, por que você não sai para deputado federal nas próximas eleições? Inteligente do jeito que você é, acho que logo seu nome seria tão conhecido e lembrado que você poderia, depois disso, tentar um governo estadual ou até uma presidência da República.

–– Não. Não. Eu gosto de trabalhar no anonimato, gosto mesmo é dos bastidores que é onde as coisas mais importantes acontecem e você bem sabe Tavares, meu amigão, que eu sou um sujeito muito tímido para aparecer em público. Sou tímido, tímido demais. O PSE precisa mesmo é de políticos de verdade que tenham tino e vocação, esses professores que nos representam são povão demais. Não precisa apenas ser político, é preciso parecer político, o povão adora isso. Por isso é preciso saber fazer política. O verdadeiro político tem que ser um ótimo ator, tem que sorrir e chorar na hora certa, pois incorporará um personagem para a vida inteira, o nosso povo acredita mais no que vê do que nas coisas que de fato acontecem. O brasileiro é naturalmente apaixonado por falsos heróis. O nosso partido ainda não encontrou o homem certo para representá-lo, é difícil encontrar políticos de verdade quando se é um partido pequeno, essa gente de nome e de peso vai toda para os partidos mais conhecidos. Na reunião que faremos à tarde com todos os deputados e senadores que representam o PSE aqui em Brasília vou falar sobre isso, quem chegou até Brasília deve continuar onde está.

Enquanto o esperto Mário aplicava seus golpes e artimanhas no próprio partido em Brasília, Ana estava em São Paulo fazendo compras de final de ano.

O Natal se aproximava trazendo paz, saudade, esperança e, para aqueles que podem, muito consumo. Mário deixou uma quantia grande de dinheiro com a esposa para que ela comprasse o que precisasse –– “Pode gastar o quanto quiser. Este ano o meu trabalho rendeu bastante. Dinheiro não é problema”. –– Ana inocentemente nem desconfia que a procedência deste dinheiro nada tinha em comum com o espírito natalino. A mulher sai feliz da vida das lojas carregada de pacotes e sacolas compradas com dinheiro sujo roubado dos cofres nefastos do PSE. Ana costuma presentear todos os parentes e amigos mais próximos nesta época do ano. Para ela, esta era uma maneira bonita de dizer “não me esqueci de você durante o ano inteiro”. Da irmã Mirtes e filhos são os primeiros presentes comprados por Ana, depois para o marido, o cunhado e por aí vai. As voltas que a consumidora dá das lojas do shopping ao estacionamento, onde está o carro, são incontáveis. A mulher vai enchendo o maleiro de presentes, quando não encontra o que procura em um shopping parte para outro sem titubear.

Estava Ana voltando das compras à tarde quando avistou o cunhado Alberto atravessando uma avenida em frente ao parque ecológico do Ibirapuera. Ana imediatamente buzinou para o cunhado, que distraído como sempre, não a viu. Buzinou mais duas ou três vezes, mas o professor continuou a caminhar sem perceber nada. Qualquer som de buzina se perde misturado ao barulho do trânsito nas avenidas paulistanas. Ana abriu o vidro da janela do carro, pôs metade da cabeça para fora e chamou-o pelo nome:

–– Alberto, Alberto!

Só então o professor a viu. Ana encostou o carro na calçada e Alberto surpreso voltou da travessia, vindo na direção da cunhada:

–– Ana! Que surpresa vê-la por aqui.

–– Eu vim ao shopping fazer umas comprinhas de final de ano. E você Alberto o que faz por estas bandas?

–– Ah... Eu vim caminhar no parque, refrescar a cabeça, gosto daqui, a minha atividade profissional deste ano já está no fim e hoje me deram folga. Como está a minha cunhada querida?

–– Estou bem.

–– E o Mário, como vai?

–– O Mário está em Brasília, foi a uma convenção do PSE. Passaram-se as eleições deste ano e ele não sossegou ainda. Esse negócio de política não dá lucro nenhum para ele, se ele não advogasse durante o ano inteiro eu não sei o que seria de nós, mas ele gosta disso, né? Ele leva a sério, o que se pode fazer? Da Mirtes e das crianças eu nem preciso perguntar porque passei na casa de vocês pela manhã e vi que todos estão bem, lamento apenas que a Mirtes tenha tido os seus serviços dispensados pela fábrica de costuras.

–– Parece que a fábrica comprou duas enormes máquinas que fazem o serviço de umas cinquenta costureiras. A Mirtes anda muito chateada com isso, mas ela também estava se desgastando muito, eu disse para ela ter calma que a gente dá um jeito nas coisas.

–– A minha irmã se arranja logo, ela não é de ficar parada. A Mirtes é muito ativa e encara qualquer situação com muita garra. Estou pensando em abrir uma loja de conveniências no próximo ano, também não gosto de ficar muito tempo sem fazer nada, e se tudo der certo ela trabalhará junto comigo.

–– Ana, você está com pressa?

–– Não Alberto, por quê?

–– Eu gostaria de conversar um pouco com você. Vamos passear pelo parque?

–– Por mim, tudo bem.

Ana e Alberto começaram a andar pelos caminhos arborizados do parque do Ibirapuera, o professor Alberto precisava de tempo para expressar o que queria dizer à cunhada:

–– Ana, sinto muito pelo o que ocorreu lá em casa naquele dia em que você e o Mário foram nos visitar. Faltou-me tato e paciência para explicar o que penso ao Mário. Eu não queria magoar você nem a Mirtes.

–– Quem sente muito sou eu, Alberto. Acho que quem deve se desculpar é o Mário, mas ele só quis ajudar, é que, às vezes, ele é meio destrambelhado para dizer as coisas. O Mário quer ajudar você e acha que pode fazer isso por intermédio da política, coitado. Ele parece não ter noção da realidade política do nosso País. Talvez por isso que ele queira levar gente boa como você para este campo obscuro na tentativa de melhorar as coisas por lá.

–– Quando eu conversar com o Mário sobre política terei mais cuidado em aceitar a opinião dele. Acho que fui de certa forma intolerante demais.

–– Ele não vai ficar sempre falando em política com você. Acho que agora ele vai deixá-lo em paz. O Mário deve respeitar também a sua opinião, acho que você está certo em não se envolver com política, isso não leva a nada, o Mário mesmo não ganha um centavo com isso, qualquer hora ele cai na real e se afasta da política. Você vai ver.

–– Eu devia estas desculpas a você que sempre foi uma cunhada tão legal e foi bom tê-la encontrado por estas bandas, acho que agora estou com a consciência mais tranquila.

Ana gostava das palavras que vinham do cunhado, ela sempre achou Alberto o homem mais agradável que já havia conhecido, muito embora jamais tivesse exposto nada a respeito. Ana sentia uma profunda admiração pelo professor, algo que, quando solteira, muito jovem ainda, a incomodou demais. Enquanto caminhava ao lado do cunhado e ouvia cada palavra dita por ele, olhava para as árvores e para o lago do parque, hipnotizada pelo bem estar que trazia aquele espaço natural em meio à loucura paulistana. O corpo, a mente e, principalmente, as narinas agradeciam à natureza. A companhia do cunhado lhe era muito agradável. De repente, as lembranças da época em que ela era ainda a meninota que desejava profundamente o namorado da irmã vieram-lhe à tona. Quantos segredos podem ficar gravados na alma, principalmente os sentimentos de menina quando está prestes a se tornar mulher. Tudo nesta fase da vida feminina anda –– uma palavra carinhosa, um abraço apertado, um amor impossível –– à flor da pele. Desde a primeira vez em que Ana viu o professor, quando Mirtes o apresentou à família, ela ficara encantada com o jeito, o charme e a beleza do novo namorado da irmã. Havia algo de especial que Ana via naquele rapaz, porém a jovenzinha, tinha dezesseis anos na época e Mirtes dezenove, sempre soube disfarçar o encanto que sentia pelo namorado da irmã, não queria de maneira nenhuma atrapalhar a felicidade de Mirtes, além disso, Alberto jamais teria olhos para ela, o professor nunca notou o brilho que havia em seu olhar e a realidade que se escondia em seu coração. Na época do namoro de Alberto e Mirtes, Ana quase sempre dava um jeito de se manter por perto dos dois quando o professor chegava. Havia ocasiões em que faltava à menina até o ar, simplesmente por causa da presença do professor, o tradicional cumprimento –– Como vai Aninha, tudo bem? –– bastava para provocar em seu corpo reações que apenas as grandes paixões podem despertar. Sentia-se envergonhada, mas sabia que não tinha culpa por se sentir assim. As meninas nasceram para sonhar, que culpa poderia Ana ter tido naquela época por sentir uma atração pelo cunhado, ela sabia que tudo não passaria daquilo e que nem Mirtes, Alberto, enfim, ninguém saberia de nada. O tempo se encarregou de mudar ou controlar os seus sentimentos. Depois que Alberto e Mirtes se casaram, Ana passou algum tempo triste e deprimida, é claro que em família dissimulou o seu estado emocional para que ninguém desconfiasse de nada, mas quando estava no trabalho toda a depressão que sentia era facilmente notada, por isso Mário quando a conheceu notou a tristeza que havia em seu rosto. O tempo se encarregou de pôr as coisas em seus devidos lugares, tudo passou, ela também se casou e restou-lhe apenas uma admiração madura pelo cunhado.

–– É melhor eu ir embora, já está entardecendo e a Mirtes e as crianças sempre me esperam para o jantar –– disse Alberto à cunhada que divagava o olhar pelo parque do Ibirapuera.

–– O que você disse, Alberto? Desculpe eu não estava prestando atenção. A tanto tempo ando por São Paulo e jamais havia caminhado neste parque, ele é lindo. Que lugar maravilhoso!

–– Eu venho sempre aqui, Ana. Trouxe a Mirtes e as crianças várias vezes, agora é mais difícil porque estou sem carro, realizam-se vários eventos culturais nos fins de semana neste local. É muito bom. Bem, é melhor eu ir embora, a Mirtes me espera para o jantar.

–– Eu vou levá-lo.

–– Não é preciso, Ana. Eu tomo um ônibus.

–– Faço questão de acompanhá-los no jantar de hoje, vê só, estou me convidando. Posso?

–– Mas é claro. Todo mundo vai adorar.

Ana jantou com a família da irmã, mas logo voltou para casa, esperaria por Mário que tinha chegada prevista para pouco depois da meia noite e, certamente, chegaria exausto da viagem. No caminho de volta para casa, ela pensava nos mistérios da vida, mesmo tendo tantas dificuldades financeiras a família da irmã lhe parecia feliz, e ela, naquele momento, com tanto dinheiro, sentia-se triste. Um estranho sentimento de solidão atacou Ana subitamente, refletiu que enquanto o marido não chegasse estaria sozinha em casa sem ninguém para lhe fazer companhia. Abriria a porta do apartamento e encontraria a sala vazia, do jeitinho que ela deixou. Tudo no lugar, tudo em ordem. Pensou: –– “Como me faz falta um filho”. –– É, a vida tem dessas coisas. Teve, no entanto, uma idéia: –– “Já que não consigo engravidar, quero adotar uma criança, vou conversar com o Mário, acho que ele vai adorar”. –– Infelizmente, naquela oportunidade, Ana não contou com a compreensão no marido: –– “Você está maluca, Ana? Você acha que eu vou criar filho dos outros? Chego cansado, com a mente esgotada, e você me vem com essa conversa. Você não tem dó de mim não, Ana?” –– desconversou Mário. –– “Tudo bem, Mário. Não precisa ficar assim, eu só tive uma idéia. Pronto. Acabou. Estou em tratamento médico para gerar um filho. Talvez ainda tenhamos o nosso filho, ainda estou nova”. –– Duas semanas depois, Ana foi ao Pet Shop buscar “Fiel”, um gatinho para lhe fazer companhia nas horas de solidão.

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Vicente Miranda
Enviado por Vicente Miranda em 13/09/2009
Código do texto: T1807446
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