Uma mente perversa

Resumindo, a minha vida acabou naquele dia.

No dia 17 de Outubro de 1989.

Poderia ser uma tarde comum para qualquer um, porque o mundo girava e a vida seguia em frente. Nada pode parar o mundo e acompanhar nossa dor, o movimento é indiferente aos sentimentos.

Se alguém me dissesse que tudo já estava acabado, eu jamais acreditaria.

E até hoje eu ainda não acredito. Eu não quero acreditar.

Terça-feira, 17 de Outubro de 1989

Eu acordei e a cama estava vazia. Ela não estava lá.

Eu tinha que ir pra porra do trabalho. Eu tinha que pagar as contas. E as contas pagas nunca salvaram minha vida.

Quando eu estava saindo, a campainha tocou. Era ela. Estava chorando, descabelada, uma visão terrível de contemplar.

Meu coração saltou pela boca. Pedi que ela entrasse e me contasse o que aconteceu.

- Estou grávida. - ela disse, e eu senti um misto de felicidade e medo.

Demorei um pouco até poder falar.

- Vamos dar um jeito... - tentei confortá-la, sem ter eu mesmo como me confortar.

- É que... - ela disse chorando - não é de você.

O meu mundo veio abaixo. Minha cabeça parecia girar.

Eu amava tanto aquela desgraçada. Eu dediquei toda a minha vida a ela.

E agora ela vinha me pedir ajuda pra cuidar do filho de outro cara. Além de jogar na minha cara que eu tinha um belo par de chifres.

- Como é que você sabe?

- Eu tenho transado com ele há dias...

Minha vontade era de tacar a cabeça na parede e esfoliar cada pedaço de seu cérebro. Mas era verdade, que nesses meses de namoro, sempre usamos preservativos para prevenir isso. Ela estava dizendo a verdade. Estava fodendo com um outro filho da puta, bem embaixo do meu nariz.

- Ele não vai querer assumir... - ela disse, escondendo a face de vergonha - Se o meu pai souber, ele vai me expulsar de casa... Ele nunca vai me aceitar de volta. E eu não vou abortar!

- Ei, ei... Fica tranquila... - eu a abracei e senti seu perfume, que era quase tóxico - Eu vou te ajudar.

Dei um sorriso amarelado, sem ter digerido aquela situação direito. Eu estava me comprometendo a ajudar. Ajudar na mentira, ajudar na traição. Eu era um babaca mesmo. Merecia tudo aquilo.

- Eu não vou trabalhar hoje, vamos até a sua casa e eu me ajeito com teu pai.

- Por favor, me perdoa, por favor... Eu não queria te fazer passar por isso... Eu te amo tanto... - ela chorava demais.

Aquela imagem me comovia, mas o ódio ainda fervia meu sangue. Mas pela criança, pelo meu filho, eu tinha que estar com a cabeça no lugar.

- Obrigada por estar comigo...

Fiz sinal pra ela se calar e a beijei carinhosamente.

Os dias se passaram, os meses também. Toda a família aceitou a história de que nós tínhamos um filho juntos. A barriga dela cresceu, nós compramos as roupinhas, arrumamos o quarto, o berço, tudo estava pronto pra quando “nosso” filho fosse chegar.

No dia do parto, eu acompanhei de pertinho. Emocionado, vi o meu filho nascer. Era uma menina linda e encoberta de sangue. E essa é a única imagem que eu guardo dela.

As luzes da sala de cirurgia se apagaram. Ouviram-se gritos, pancadas e desespero.

Eu corri para buscar ajuda e quando voltei, vi a coisa que mais me aterrorizou em toda a vida. Minha filha estava morta, estraçalhada na cama, junto com a mãe. Ela enfartou de tanto chorar. Morreu de desgosto e tristeza. Perdi minha esposa e filha. Perdi minha vida. Decidi jamais voltar a respirar. Os médicos haviam sumido, tudo estava silencioso depois da tempestade. Só a quantidade extrema de sangue gritava naquela sala, que cheirava a morte.

Sexta-feira, 14 de Agosto de 2009

Cela do presídio.

Estou partindo dessa vida. Não posso mais agüentar.

Eu suportei por 19 anos, minha alma já foi torturada demais.

Eu matei minha esposa e filha.

Eu estraçalhei o corpo dela e devorei cada pedaço com vontade.

Ainda sinto o gosto do sangue fresco, sinto o gosto da tripa em minha boca. Tenho vontade de vomitar.

Eu jamais queria ter feito aquilo, jamais pensei que seria capaz.

A coisa que me fez cometer tal crime é a mesma que hoje ainda sussurra em meus ouvidos durante a noite. Num choro melodioso de criança. Gargalhando da minha desgraça. Aquilo que não me deixa em paz. Loucura, insanidade, ciúmes, existem vários nomes para se chamar. Mas para mim isso é apenas um demônio, do qual ninguém está livre; do qual ninguém pode escapar.

Não tem chifres, não tem cauda, ou sequer uma personificação real.

Está dentro de todos nós. O demônio chamado maldade.

Glaucio Viana
Enviado por Glaucio Viana em 27/09/2009
Reeditado em 27/09/2009
Código do texto: T1834184
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