Pão & Circo

(Para Rodrigo que, sem saber, mostrou-me possibilidades)

Gritos roucos e sussurros sonoros, nossa constituição é tão bonita no papel: ao ligar a televisão, homens de gravata falando em mudar o mundo, molhando de suor as axilas do paletó, gesticulando alto e bonito meras inverdades da configuração da política.

Em escadas e becos e labaredas, rostos sem nome morrendo de fome. Em igrejas ricas, lotação de fiéis pobres. Presidente te salva, Jesus te falta, pague o imposto e o dízimo. Fome zero e bola de futebol hão de ser a resposta: pão e circo brasileiro.

Mentira, desemprego, analfabetismo, roubo, corrupção, fome, assalto, estupro, não há moradia não há eletricidade e nos falta segurança, sozinho com frio, choro de noite e molho o travesseiro porque só sinto desespero. Um kg de arroz e Maracanã: pão e circo brasileiro.

Em escadarias e becos e ardência e desesperança, eu sou. No antigo retrato da casa da minha avó, eu fui.

Em multidões suadas, luzes negras amarelas e cor-de-rosa, copo de plástico, língua saliva lábio, bitucas de cigarro, erva, farinha, aromatizador de ambiente argentino, gozo, latas, plástico, lençóis e mãos: perder-se.

Escapar é preciso, “estar feliz porque nasceu” explique-me como, se estou pelado fodido e cagado? Escapar é preciso, preciso e certeiro, porém distrai e não engana. Não há porque fechar as cortinas e persianas: a luz continua lá fora. A manhã sempre chega porque vezenquando a madrugada acaba antes de eu apagar. Diversão é o bode expiatório da minha vertigem e do meu desespero. Da minha necessidade de não precisar de coisa alguma.

“eu também não acredito, meu amor. Nem mágico nem coelho da páscoa nem Papai Noel. Senta no meu colo que eu te mostro a fantasia.“

“eu te mostro a fantasia. Mas tu não ganha nada se fingir. Eu sei quando fingem, maluco bem vestido não me engana, tu tem que gemer e revirar os olhos de verdade.”

“e revirar os olhos de verdade, sentir prazer mesmo e me fazer esporrear. Que chupar bala com papel não tem gostinho de uva. Uma viagem ao paraíso é o prêmio.”

Em corpos sintéticos, bonecos de borracha, pílulas, flhases e luzes alucinadas, tubos, papéis, carreiras e superfícies lisas, vermelho rápido, vermelho louco, vírus destruidores, casas noturnas, doenças venéreas, posto de gasolina, botecos escondidas com fichas de bilhar a 30 centavos: perder-se.

Manhã qualquer do dia que for, pode ser janeiro ou outubro, pode ser segunda ou sexta-feira, pode ser 0h ou 13h: sempre parece manhã de domingo. Levantar sem olhar para o lado, catar a cueca do chão sem notar se junto dela há calcinha de renda ou outra cueca fedida, colocar a camiseta suja, vestir as calças manchadas, calçar as meias brancas encardidas e o tênis furado. Girar a maçaneta, abrir a porta e quase sem soltá-la e sem voltar-se para trás, apenas puxar o grande retângulo de madeira até fazer barulho. Ir até a esquina mais próxima e ler na placa o bairro e a rua. Se estiver longe ir até um orelhão, se está perto caminhar olhando para baixo. Perto de quê? Nenhuma expressão na face.

Em rostos sem forma, vultos, máscaras, camisetas de algodão, pentelhos negros, água suja, cheiro forte, papel laminado, comprimidos, caixas de remédio, privada, vômito, seringas, agulhas, sangue, percussão, batidas desenfreadas, faróis, tampinhas, sobrancelhas, virilhas, cílios, sofás, camas, sacrifícios e nojos, vitórias e recompensas: apagar. Em jalecos, aço, receitas e jardins: encontrar-se para clínica afora, perder-se outra vez.

Em meio a cordas, forcas, overdoses, giletes, banheiras sangrentas, 57 comprimidos de receita controlada, vigésimo terceiro andar de edifício, rodas de biarticulado, fogão a gás, dar um suspiro, olhar para cima e indagar um longo e demorado POR QUÊ, garranchar em letras rápidas um bilhete de justificativas insípidas e no instante tão claras, segurar o peito emitindo as descompassadas batidas de um coração que já parecia tão morto fumando – o derradeiro - cigarro: deixar-se perder.

Um pouco mais de coragem, um pouco mais de vontade: mas a apatia já é tanta.

Olho atentamente o retrato antigo, que não é uma longínqua lembrança de amor de verão perdido.

Olho atentamente o retrato antigo, no fundo deste há um quadro bem emoldurado duma ruazinha não asfaltada com casas de madeira, pintadas de branco, alinhadas a perder-se no horizonte, que não é uma bonita família no tempo em que todos ainda falavam a mesma língua.

Olho atentamente o retrato antigo, no fundo deste há um quadro bem emoldurado duma ruazinha não asfaltada com casas de madeira, pintadas de branco, alinhadas a perder-se no horizonte, à direita e acima um abajur de canto não aceso de haste de madeira mogno e cúpula cor creme, que não são amigos felizes, sorrindo faceiros para a câmera em dia de fazer trabalho de estudos sociais na casa do coleguinha cuja mãe oferece os melhores lanchinhos da tarde.

Olho atentamente o retrato antigo, no fundo deste há um quadro bem emoldurado duma ruazinha não asfaltada com casas de madeira, pintadas de branco, alinhadas a perder-se no horizonte, à direita e acima um abajur de canto não aceso de haste de madeira mogno e cúpula cor creme, no centro um esboço de figura humana , olhos castanhos marotos mirando um ponto que não é nem a lente da câmera nem o lado, mas um ponto entre os dois; como se descobrisse ali anjo loiro azulado, fada madrinha esverdeada, amor platônico sangrento. O que torna o retrato incomum, não é o fato de ser antigo, não é o fato dos olhos do foco olharem para um ponto que não se pode adivinhar. Não é o quadro bem emoldurado no fundo, nem o abajur de canto à direita. O que torna o retrato incomum é o esboço de figura humana em seu centro, ser eu, imortalizado numa foto 10x15cm, antes de me perder.

Anna P
Enviado por Anna P em 28/06/2006
Reeditado em 03/07/2006
Código do texto: T183541