Uma questão de homônimo

Desorientado, ele estava numa cela encardida, mal

cheirosa e escura.Desesperava-se. Até aquele instante não

atinava ao verdadeiro motivo dessa sua prisão. Na verdade,

para ele era um crime-fantasma.Achava que fora preso sem

quê nem pra quê.O que estava havendo era uma questão de

injustiça da Justiça. Esse trocadilho vicioso era o mais

exato para explicar o caso.

Encontrava-se em casa.Refestelado no sofá, em frente

ao aparelho de TV, vendo um bangue-bangue (sua preferência

até então), sorvendo um gostoso suco e nhoc-nhoc em

pipocas salgadinhas e amanteigadas, quando tocou a

campanhia.Esbravejou um palavrão.Quem seria o chato de

galocha que se atrevia a interrompê-lo naquele prazer

visual, emocional e gustativo? A não ser que fosse uma

loira exuberante ou uma morena vistosa ou, ainda, uma

mulherona qualquer de qualquer cor ou tipo, porém daquelas

de chamar atenção e que estivesse em busca de prazer.Assim

até que justificava aquela interrupção.

O que viu através do olho mágico fez estampar em

sua face uma decepção frustrante. Mais do que isso,

preocupante.Eram dois policiais com cara de broa e outro

à paisana com pinta de detetive; de capa e chapéu à moda

detetivesca.O que seria que queriam com ele? Fez uma

retrospectiva em seus atos e desatos e não encontrou nada

que desabonasse sua moral ou suas eventuais imoralidades...

É, talvez erraram de endereço- consolou-se.

Novo toque insistente na campainha fez com que ele

abrisse a porta.Não retirou o pega-ladrão.Há muito ladrão

que se veste de policial- pensou.Espiou."Polícia!"- o

paisano apresentou as credenciais. A corrente foi retirada

da porta e os policiais entraram. "É o senhor Francisco

Maria de Jesus?".Confirmação.Ordem de acompanhá-los à

delegacia. Indagação. Espanto.Tentativa de justificação.

Não adiantou.Então, delegacia...

Interrogações de praxe.Respostas negativas. Não, não

sabia de nada.Estava aéreo, mais por fora que umbigo de

vedete.Barulhinho chato aquele da máquina registrando,

através de dedos femininos (ainda não havia computador),

tudo que ele dizia.Tirou o olhar dos dedos e passou para o

rosto da dona dos dedos. Em seguida, para todo o visual

corporal, parando o olhar naquelas pernas.Que pernas!Também

ele era incorrigível.Aquela era hora de pensar em pernas e

tudo o mais? Estava num sufoco, numa enrascada e o cara

pensando em pernas. Pernas?!...De que mesmo é que o

acusavam? Ah! Roubaram a carteira de uma senhora idosa e a

empurraram na calçada.Quebrou a perna, a coitada!(Olha aí

perna de novo!Mas não da que ele gostava, isso era certo).

Onde? Quando? Como?- ele indagava a todo mundo na delegacia.

Azar o dele.Perto do prédio do seu apartamento.Ele passara

por perto, quase na hora.Nem vira nada.Não olhava para idosas

(preferia esse eufemismo).Envergonhou-se dessa confissão.Até

parecia que era tarado, mas não era.De mulher boa, gostava

muito.Isso não negava.Não era crime. Porém se não cobiçava

idosas, isso não queria dizer que ia derrubá-las por aí afora

para roubar suas carteiras com suas prováveis aposentadorias

"exorbitantes", coitadas.Não, ele não era um crápula e tinha

que provar que fora um equívoco. No entanto, não provou.Não

conseguíra até aquela hora.Disseram que no corre-corre do

bandido, caíra um documento com o nome de um Francisco

qualquer-coisa...Descobriram que no prédio vizinho morava um

Francisco.Será que não sabiam que tem Francisco em todo

lugar? Por que acharam que seria ele?

Uma explicação plausível para a polícia:era um

Francisco com sobrenome de santo.Aí, o azar dele, o preso:

Francisco Maria de Jesus era o seu nome. Agora o resultado:

sua presença inexplicável para si próprio naquele lugar

abominável. Ele, cidadão justo, justíssimo, cujo defeito era

ser caído por mulher, o que, aliás, para ele não era defeito,

era virtude, da boa! E bolas, para quem pensasse o contrário.

O caso engrossou.Requisitou advogado.Foi então que

houve o desfecho.Diagnóstico errado:o sujeito culpado era

Francisco Jesus de Maria.Uma simples questão de troca na

hierarquia dos santos. Um falso homônimo.

Nadir de Andrade
Enviado por Nadir de Andrade em 29/06/2006
Código do texto: T184771