O quebra-cabeça

O pequeno João Gabriel, debruçado no tapete da sala, remexia curioso nas peças do jogo que lhe fora dado pelo avô quando completara sete anos.

- Vovô, as peças não encaixam!

- Encaixam sim, Gabriel! Por isso que esse jogo tem esse nome: quebra-cabeça. É isso que você está fazendo agora. O jogo ensina você a pensar.

Tentativas em vão. Uma peça aqui, outra lá e nada de surgir o mapa-múndi estampado na caixa do jogo. Nem mesmo a parte destinada ao Brasil saía. Parecia que cada estado tinha declarado independência: Santa Catarina teimava em unir-se ao Rio Grande do Sul, a Bahia fugia de Minas, que por sua vez renegava a existência da fronteira com o estado de São Paulo, o qual ignorava o Rio de Janeiro...

- Paulo, faz um mês que o seu pai deu este quebra-cabeça de presente ao João e até hoje ele não conseguiu formar nem dez por cento do desenho!

- Calma, querida... o Gabrielzinho consegue. É só falta de interesse dele.

- Como calma!? E não venha com essa história de falta de interesse. Desde que ele ganhou esse jogo não faz outra coisa senão tentar montá-lo. Acorda e vai pro tapete da sala, almoça e novamente está lá, faz as tarefas da escola correndo só pra voltar pro jogo, e nada de conseguir montar! Acho que nosso filho precisa fazer um teste de Q.I.

- Sem exageros, Angélica. – tentava amenizar o pai do menino.

- Não adianta, vou levá-lo a um psicólogo! Imagina se minhas amigas descobrem que tenho um filho retardado... Será o fim, meu Deus!

- Você está radicalizando, querida. É só um jogo, esquece isso...

No entanto, a preocupação da mulher fez com que Paulo falasse ao pai a respeito das suspeitas da esposa acerca da inteligência do jovem João Gabriel:

- Que ideia estapafúrdia é essa, meu filho! Onde já se viu. Meu neto é o garoto mais esperto que conheço! Quem precisa de teste de Q.I. é a sua mulher!

- Não fala assim, pai... a Angélica só está preocupada com o Gabrielzinho.

- Claro, claro... sua mulher está preocupada com o que pensam as amigas, o vizinho, o papagaio da cunhada do vizinho... Faça-me o favor, Paulo! Tome uma atitude de homem. Essa mulher faz o que quer com você!

No dia seguinte, lá estava o pequeno João Gabriel submetendo-se a uma bateria de testes. Resultado: Q.I. 140, bem acima da média. Angélica não se conteve e passou toda a tarde ligando para as amigas a fim de contar a novidade sobre o seu pequeno gênio. - Mas e o quebra-cabeça sem solução? Bobagem, não importa mais - pensou.

Dias depois, o avô de Gabriel recebeu uma carta com os seguintes dizeres:

"Caro Senhor Raul,

Informamos que o brinquedo Quebra-cabeça, da marca Happy End, adquirido pelo senhor no dia 12 de junho, possui os seguintes defeitos os quais são de inteira responsabilidade do fabricante: - Peças com tamanhos e formatos diferentes do original; - Peças em falta. Informamos também que o senhor possui um prazo de trinta dias para comparecer à loja e receber um produto novo. Pedimos desculpas pelo transtorno.

Atenciosamente,

Brinquedos Sol Feliz"

Raul foi consumido por uma felicidade imensa, pois ali estava a prova de que seu neto era um garoto normal. Decidiu então buscar João Gabriel para juntos irem até a loja trocar o jogo. No caminho, parou na casa lotérica do Ubaldo, um velho conhecido seu, onde sempre fazia uma fezinha.

- Pois é, Raul. Só no mês passado foram três assaltos. Estou quase fechando isso aqui.

- Não faça isso, Ubaldo. Muitos são aqueles que tentam a sorte na esperança de mudar de vida. – disse Raul enquanto pagava o jogo.

De repente, dois rapazes encapuzados entraram na lotérica:

- Assalto, assalto! Passa o dinheiro, tio! Anda logo. Abre essa gaveta aí!

Nesta fração de tempo, Raul guardou a carteira no bolso detrás da calça. Um dos rapazes estranhou o movimento suspeito e fez dois disparos certeiros. Fugiram apavorados sem levar qualquer dinheiro. O velho Raul não resistiu e morreu ali mesmo, alvejado pelos tiros que lhe acertaram o coração. Vinte minutos depois, a polícia chegou ao local. Ao revistarem o corpo, encontraram dentro da sua carteira o endereço do filho Paulo e uma fotografia onde o avô segurava o pequeno João Gabriel ainda recém-nascido.

- Aqui está, seu Paulo, a carteira do seu pai. Encontramos também este envelope. Parece ser uma carta... - disse o policial.

- Obrigado... O dia hoje foi pesado. Acho que precisamos descansar...

- Descanse o senhor, seu Paulo. Eu ainda tenho muito bandido pra prender. Boa noite!

Seguiram-se os eventos de praxe: velório, sepultamento, missa de sétimo dia... O clima da casa ficou vazio e estranho sem a presença alegre de Raul. João Gabriel pouco comia, Paulo menos ainda. Angélica se abatera no início, mas logo voltou ao seu estado normal após uma semana. E assim passaram-se dias, semanas, quase um mês...

Paulo entrou no quarto, pegou alguns álbuns de fotografia e reviveu fatos marcantes da sua vida. Ele e o pai, ainda jovem, segurando-o nos braços no dia do seu batizado; ao seu lado, no dia em que formou-se engenheiro; segurando o João Gabriel no primeiro aniversário. Seus olhos marejaram. Pegou a carteira do pai, juntamente com o envelope. Alguns documentos, um pouco de dinheiro. Leu a carta e só então percebeu o que o pai iria fazer naquele dia. Olhou a data no relógio. Era justamente o último dia do prazo para receber o quebra-cabeça novo.

- Gabriel, Gabriel, vem aqui!

- O que foi, papai?

- Vamos até a loja de brinquedos onde o seu avô comprou o quebra-cabeça!

Mesmo sem entender, o menino partiu com o pai. Paulo entregou a carta a uma vendedora, que logo voltou com uma caixa nova do brinquedo. Ao chegarem em casa, Paulo abriu a caixa e despejou as peças no tapete:

- Agora monte o mapa, filho!

- Mas eu não consigo, pai! Já tentei com o outro e não consegui...

- Tenta filho, vai... faz isso pelo vovô!

Paulo saiu, foi dar uma volta. Cerca de uma hora depois, para sua surpresa, o mapa-múndi estava lá, desenhado no tapete da sala. Cada estado, cada país numa sintonia perfeita. Nada de disputas por fronteiras, nada de pessoas morrendo de fome, doenças ou guerras. Era um mundo ideal. Certamente, aquela era a mensagem que Raul desejava transmitir ao neto, de que ele jamais deveria perder as esperanças na vida.

Mas João Gabriel desfez o desenho e guardou as peças do quebra-cabeça. Correu para o seu quarto e voltou com a caixa do jogo defeituoso, jogando suas peças no chão como fizera seu pai. Pensou então que o mundo não era igual a um quebra-cabeça perfeito, como queria seu avô. O mundo era feito de peças tortas que não se encaixavam. O mundo era muito complicado para a sua jovem cabecinha. Desistiu de tentar montar as peças. Duas lágrimas escorreram-lhe dos olhos castanhos. Foi para o quarto, dormiu e sonhou com o avô, recordando das tardes em que os dois iam à praça tomar sorvete.