Retalhos do submundo

I – O sonho

Oh, alma leviana, que sob teus pés deslizam nuvens velozes! Sobre o crepúsculo, o anunciador das trevas ergue as mãos e sacode dos cabelos as suas estrelas. Vem chegando o frio e os olhos desafiam os últimos minutos de luz. Fim do espetáculo, e cai a cortina sobre o pescoço como guilhotina. O público se recolhe e volta a habitar suas choupanas sombrias. Mãos aéreas sustentam as tochas, e as ruas se iluminam com fogos tremulantes. À passagem de um estranho, os cães ladram. Ele te chega à porta, uma alma que espera consolo, e bate manso. Abres e convida-o a dividir tua cama; e, quando os galos deixam despertar seus relógios de sol, ele foi embora...

II – Opiofagia

Devora meu corpo embebido de sonhos! Dou-te dos meus frutos e te faço esquecer as lágrimas sobre o túmulo dos teus infortúnios. Quantos corpos aí jazem depois de tê-los velado com o fogo do ódio e assinado seus óbitos com a pena do orgulho? Mas ainda te espetam algumas arestas mal cinzeladas. Estou aqui. Come da minha carne e bebe do meu sangue, mas com cuidado! A gula e a luxúria resultam numa infusão fatal.

III – A devota

Já passavam das três da manhã quando Lívia abriu os olhos. Seu corpo ardia. Escorria à bica suor das têmporas. Sentia-se sufocar. Temeu que o instinto rasgasse a roupa e a pele, para deixar que o sangue brotasse. Contudo não ousou pedir ajuda. Afinal, pedir ajuda a quem? À empregada, aquela pagã, sacrílega? Não! A essas horas, está por aí a deitar os cabelos sobre o corpo de um homem, sendo apertada pelos quadris e sentindo as espáduas nuas arranhadas por garras selvagens. Nem todos serão salvos! Entrelaçou então os dedos numa oração sôfrega. Dançavam, na memória, as palavras de Deus. Dois olhos chispantes aclararam por detrás das cortinas.

- Vem até mim, Rúbia! Despe-te desta casca!

IV – O diálogo

Sobre a mesa, o copo ainda esperava sonolento o último gole de vodca. O cigarro tamborilava na borda do cinzeiro. Os olhos se investigavam rigorosamente, ainda que com leves nuances de desejo. As bocas guardavam segredos por trás dos dentes. Aqueles dois corpos pré-ensaiavam um drama. As mãos de ambos abandonaram as formalidades do ambiente e dançaram umas com as outras: eram dois casais sob o ritmo das vozes alheias...

No entanto, eles se levantaram da mesa, não mais do que cinco minutos, assim que o garçom lhes trouxe o valor da comanda. Despediram-se, por conseguinte, e saíram engolindo os segredos.

V – Os ratos e o escafandro

Seria pouco provável que, debaixo d’água, ela ainda lembrasse detalhes dele. Estava por se afogar e, com os olhos já esbugalhados, investigou de memória se havia alguma forma de vir à tona. Seria a última vez que ousaria se atirar ao mar sem o maldito escafandro... E aquele homem que se danasse! Afinal deu a ela todas as delícias de uma vida proibida e, agora, vestia-se de cinza e dançava agarrado à sua maior inimiga. Moveu, então, braços e pernas. Tentou fazer-se peixe. Pensou em ter barbatanas e escamas. Tinha as maiores nadadeiras que se podia conceber. Emergiu. A boca fez-se um chafariz. Subiu ao navio e maldisse o escafandro. Ia jogá-lo ao mar, no entanto uma pequena rata havia feito dele seu ninho.

VI - O cativeiro

I

É no jardim do Éden que se veem as grandes Virtudes gracejando em ciranda e saltitando sobre os rios das delícias, como as nossas belas ninfas que habitaram os vales da Antiguidade. Deus sentado em seu trono incrustado de sóis, batendo palmas e dando vivas. Os arcanjos trombeteiros juntos numa orquestra sob a regência da Natureza. O Espírito Santo dando a cada boa alma um pequeno ramo de oliveira; e Maria estupefata com o coro harmonioso dos Querubins.

II

Numa ilha, nas profundezas do Vesúvio, o Pandemônio encontra-se na mais plena orgia, já posta a luxuosa mesa sobre a qual dançam os Pecados trajando púrpura. Tilintam taças ébrias nas mãos esquálidas dos demônios menores; e, às grandes portas de entrada do salão principal, soldados robustos, dotados de enormes asas, deixam molhar as barbas no sangue dos condenados. Logo mais, abrem-se aquelas portas, deixando entrar o Senhor do Ígneo Território: o imponente Satã e seu séquito real. Belial, Mamon, Moloch e Belzebu sentam-se junto ao seu senhor e confraternizam.

III

No entanto, entre estes dois mundos, Cristo ainda está crucificado nas paredes, sufocado pelas mãos desesperadas no adro das igrejas ou dividido corpo e sangue sobre o púlpito; ou, nos asilos nefandos, acorrentado nos olhos in extremis ou nas orações insípidas. Depois de mais de dois mil anos, Cristo não voltou ao Empíreo nem liderou exércitos contra o Pandemônio. Ele foi seqüestrado por nós homens e ainda está cativo. Ao longo de todos esses séculos, por ser tido como símbolo para a Religião e dado por morto pela Ciência, Cristo nos tem servido de escravo. E, agora, nem o Céu nem o Inferno se dão por isso.

VII – prognosis quoad valetudinem

Por duas vezes, ainda naquela mesma noite, haviam batido à porta de Sônia. Ficou quieta debaixo dos cobertores. Escutou os cascos baterem no chão, como se tirassem faíscas, e um relinchar plangente a fazer eco pela Praça Oswaldo Cruz. Certamente era um cavalo enorme. O vento ululava, marcando com os lábios frios a janela do quarto. No cabide, preso ao bolso do jaleco, o estetoscópio oscilava levemente como um pêndulo. Sobre a penteadeira, os livros de saúde pública, patologia e anatomia amontoavam-se, ameaçando desmoronarem. Decorreram duas horas, e a taquicardia fez com que Sônia abandonasse a cama e fosse tomar água. Sentia os membros moles e achou que estivesse com vertigens. Sentou-se diante de um espelho na sala e prescreveu-se calma. Pela terceira vez, escutou baterem. Pediu que aguardasse, pois estava em consulta. Pouco depois, ergueu-se pálida e abriu a porta. Um menino estendeu a mão rechonchuda, cumprimentando-a. Sônia encaminhou-o até uma saleta. Solicitou-lhe então o prontuário e o último boletim de atendimento. Examinou-os, mordiscando uma caneta. Ao cabo da leitura, olhou para o menino e lhe implorou paciência.

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 12/11/2009
Reeditado em 22/06/2010
Código do texto: T1919540
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