Post Mortem

Lilá estava contente naquela manhã de domingo. Estava passando o final de semana na velha casa de sua avó. A residência era extremamente divertida: era grande e antiga, tinha sótão e porão e muitos quartos grandes. Além disso, havia o enorme jardim, do qual a avó cuidava com carinho e dedicação.

Naquela manhã, vovó resolvera arrumar algumas velhas tralhas que estavam acumuladas no sótão. Lilá quase nunca tinha permissão de ir lá, porque poderia haver ratos e aranhas, além de muita sujeira e coisas quebradas. No entanto, a avó permitira que ela lhe ajudasse com a arrumação, uma vez que estaria com ela, supervisionando tudo o que a menina fazia.

A menina fuçava os velhos baús cheios de roupas e coisas velhas como se fossem os baús roubados pelos piratas de filmes, cheios de ouro e jóias.

-Vovó, por que tem tanta coisa velha aqui? – Perguntou a menina, curiosa.

-Essa casa é da família há muitas gerações. As coisas velhas foram sendo colocadas aqui e acho que ninguém nunca teve muito tempo ou disposição para arrumar. – A mulher mais velha disse. – Deixaram essa tarefa para nós duas.

-E por que você está arrumando as coisas agora?

-Não sei, querida... Acho que fiquei curiosa para ver o que estava guardado por aqui.

As duas prosseguiram com a arrumação.

Lilá começou a remexer uma estante, onde encontrou vários livros. O primeiro deles era uma versão da “Bela adormecida” com vários desenhos bonitos.

-Vovó, posso ficar com esse livro?! – A menina perguntou com um sorriso e um brilho inocente no olhar.

-Pode, querida. – A velha senhora respondeu benevolente.

Lilá sorriu faceira e continuou a fuçar na estante. Achou alguns outros livros interessantes, algumas Bíblias velhas e álbuns de fotografia, que começou a folhear. Eram antigos e tinham fotos preto e branco ou em tons de sépia que retratavam pessoas soturnas que a menina nunca havia visto.

-Quem são eles, vovó? E por que estão dormindo? – A menina apontou para uma fotografia em especial, que retratava dois rechonchudos bebês metidos em camisolas grandes. Os dois estavam em uma cama e dormiam serenos.

A avó olhou a foto em silêncio. Suspirou e pegou o álbum da mão dela.

-Não sei quem são. Esse álbum é de antes de eu nascer. – Disse. Fez uma pausa. – E eles estão dormindo porque estão mortos.

A menina piscou bem os grandes olhos castanhos e olhou novamente os bebês.

-Por que tiraram uma foto deles?

-Porque era um costume. As pessoas achavam que assim a alma das pessoas que tinham ido embora ficaria na imagem.

-Aaah. – Ela murmurou. – Posso ficar com o álbum também?

-Não, querida. Não acho interessante que você fique com isso. – A avó falou isso em tom macio. Lilá ainda era muito menina e talvez, com o tempo, aquelas fotos lhe provocassem pavor, quando ela realmente entendesse o que elas significavam.

A garotinha continuou a buscar coisas pelo velho sótão, aparentemente esquecida do velho álbum.

No entanto, Lilá não esqueceu da foto, nem da explicação de sua avó.

A avó ficou tranqüila com relação a isso.

Dois meses depois, no velório do filho e da nora, a velha senhora chorava quando viu que a neta batia inúmeras fotos.

-Vou guardar bem a alma do papai e da mamãe... – Lilá disse, sorrindo para a avó, que chorou um pouco mais.