Polícia da madrugada

tive um bom dia-isolado-de-tudo-e-de-todos. são 2 da manhã de um "novo dia". e observo o amarelo envelhecido dos postes pelas grades da janela, grades milenares, assim penso, e também observo todo o resto, incluindo:

I - grama de um verde bem escuro, folhas de árvores da mesma cor e troncos beirando o preto;

II - carros estacionados bem debaixo do meu nariz, alguns sujos de um barro meio sei lá;

III - asfalto cinza, meio fio branco;

e, principalmente, IV - os carros que passam.

cada motor que ouço me enche de uma excitação estranha, misteriosa. comecei a escrever pois, após terminar a leitura de um capítulo do livro que estava lendo, despertei para o som de dois homens conversando na rua, dentro de seus carros, meio embriagados:

- ei cara, você por aqui? essa hora? namorada mora aqui?

- não não, disse o outro, e daí já não prestei atenção em mais nada, querendo escrever. por causa de um interessante pensamento.

quantas namoradas moram aqui? no meu bloco residencial? e quantas voltam pra casa agora? e esses caras? por trás de cada carro e de cada janela há uma vida atarefada na madrugada do domingo, voltando de alguma festa. uma mulher bonita de saia preta e curta dentro de um uninho quadrado, também preto - bonita num carro popular aqui siginifca ainda em ascenção - mas muito elegante. quem comeu essa mulher, quem vai comê-la hoje?

depois do uno um cara sem camisa dentro de uma hilux modelo antigo. sereno, acho que amigo da vez. e muitos ruídos da madrugada ao longe e vruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuummm! com dificuldade pelo quebra-mola passa o carro da PM, dois policiais dentro, vejo só de relance. foi uma baita acelerada, forçou bastante o motor antes de mudar de marcha. PM. talvez assim como eu, polícia da madrugada. vigilantes, atentos. voltaram. é a ronda, a asa sul é tão segura.

na pontinha de L2 sul que eu vejo transitam carros sem parar, há muito movimento e agora acabaram de passar por mim dois carros seguidos, puxa, um idea e um civic preto. saindo da quadra, e lá, lá vem um fox prata estilo família-estamos-voltando-da-festa-da-maricotinha ou qualquer inho inha filho de alguém importante.

um gol g3 com dois caras dentro. luz amarela meio envelhecida do poste. passam conversando e tomando alguma coisa.

voltaram.

pensei que não haveria tanto movimento assim mas é a madrugada do domingo (extensão de sábado, ainda) e todo mundo faz alguma coisa, eu por exemplo escrevo incessantemente como um bicho com fome insistente no seu instinto de sobrevivência.

apesar de tanto movimento ainda ouço os grilos e dentro da minha casa só escuridão e os meus dedos batendo no silêncio, polícia da madrugada anjo de solidão INEFÁVEL da leitura e da escrita, da palavra enfim. não do carro - passou um punto - mas da garagem fria, da fotografia, do amarelo envelhecido e alto do poste.

ó madrugada da minha vida, pelas grades da janela, sem sentido ó madrugada, vazia de qualquer coisa, insone, outro fox, e só isso, dessa vez preto.

barulho de pneus e motores e rolamentos o que quer que seja, me volto para minha própria escuridão interior de casa-alma-quarto, fecho da rotina as cortinas e não quero mais saber tiro a chave

da ignição.

da porta.

trancado, sem alarme.

transcendo.