A TEIA DAS ARANHAS NEGRAS

"Longe de a loucura ser a falha contingente das fragilidades de seu organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência. Longe de ser para a liberdade um insulto (como EY a enuncia), ela é sua mais fiel companheira, ela segue seu movimento como uma sombra. E o ser do homem não só não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não portasse em si a loucura como limite de sua liberdade". (Jacques Lacan)

          Será mesmo a loucura uma fuga? É o que estou tentando provar. O indivíduo nasce num ambiente cheio de cuidados, cercado de muito carinho pelos pais, irmãos ou avós, quando os tem. E um dia descobre que foi enganado, ludibriado, que tudo não passava de uma farsa, de uma mentira. E vem a revolta, a raiva, até mesmo o ódio pelas pessoas, pelas coisas, pela vida. Aparentemente Américo era um indivíduo normal. Cursara até o segundo ano ginasial, empregara-se no comércio, depois fora trabalhar numa agência de automóveis. Seu trabalho abnegado fizera crescer depressa a firma, transformando-a numa grande empresa. Era um dos sócios proprietários. 

          Alegre, brincalhão, muito confiante, gostava das pessoas, contava casos engraçados, era feliz. As pessoas gostavam dele à sua maneira, faziam-lhe troças, riam de suas idéias e algumas se aproveitavam de sua ingenuidade. / Quando Américo descobriu isso, já era um pouco tarde. Os negócios iam bem até que um dia apareceu o "desfalque". Houve muito reboliço no escritório, muitos comentários desairosos e até uma certa desconfiança em relação a ele.
Américo não podia entender como uma coisa dessa fora acontecer logo ali diante de seus olhos, na empresa que guardava com carinho e muito zelo. Só que confiára demais nas pessoas. / Eram quatro sócios, dois irmãos, um solteiro e outro casado e um amigo que fora seu colega na escola, o Álvaro. Ambos cursaram o mesmo ano escolar e fizeram juntos muitos planos para o futuro. E agora estavam alí, ocupando cargos bem onerosos. Não eram milionários, mas viviam econômicamente bem. Álvaro se casara com uma colega do ginásio e Américo com uma moça do interior por quem se apaixonara quando de uma viagem a negócios, como representante de firma. / Marina era uma moça simples, de bom gosto, vestia-se relativamente bem e sabia conquistar as pessoas com suas maneiras persuasivas, misto de ambição e esperteza. Era o que algumas pessoas julgavam, talvez por inveja

         . Américo nunca se apercebera disso. Para ele, Marina era a companheira ideal. Não que fosse dado a grandes paixões, mas gostava da vida sossegada e de seu trabalho. Foi um grande choque para ele, havia comentários no ar, risinhos às suas costas, conversas que silenciavam quando se aproximava. Custara muito a notar. Mas a verdade se fez evidente, diante do "desfalque". Havia um grande rombo na Caixa, e isto não se poderia negar. O contador, chamado a explicar, provara que a escrita estava toda certa. Não havia rasuras e as contra-partidas do Diário estaam corretamente lançadas. As notas fiscais registradas no Copiador Eletrônico conferiram com os
lançamentos, as Duplicatas estavam em ordem. Os cheques emitidos estavam todos registrados no Livro de Contas Correntes com o Banco. Tudo parecia normal. Mas havia aquele buraco no meio de tudo. Um vazio na sua mente se fez. Américo sentia-se como se estivesse no porão de sua casa quando tinha cinco anos de idade. Um dia, brincando de esconder com o garotos da vizinhança, deparara horrorizado com uma grande teia de aranha no canto sombrio do porão, e aquela aranha negra que parecia hipnotizá-lo. Américo ficara parado, estarrecido, sentindo-se desfalecer, quando um dos garotos o encontrara e sacudira-lhe os ombros, trazendo-o à realidade. Por isso, Américo tinha pavor de aranhas, mesmo das pequenininhas, das caça-moscas. Agora voltara-lhe aquele medo, aquele pavor. Sentia-se como enredado numa grande teia de aranhas. Mas não era uma somente, eram muitas, muitas aranhas negras que o
rodeavam. Estavam alí e o fitavam cara a cara. As pessoas aguardavam o interrogatório pelo investigador de polícia, enquanto um auditor especializado examinava toda a escrita contábil, minuciosamente. Até então nada fora encontrado que incriminasse algum dos presentes. Foi somente quando o auditor pediu as Notas de Compra e Venda e as Marcas de Registros dos carros, para conferir com as marcas registradas no Diário, e que dera com um nome escrito diferente; era uma marca do carro "Maverick" e o ano de 1972. Aí começou uma série de investigações, que durou vários dias. Foram "checadas" todas as agências intermediárias, de compradores e revendedores, inclusive os carros que tinham passado recentemente pela Alfândega. Aí apareceu o primeiro sinal do rombo. Havia quatro marcas trocadas que não coincidiam nem com o ano nem com o valor registrado. Os carros novos importados tinham sido trocados por carros velhos e reformados como se fossem novos: um Pacard, um Chevrolet, um Passat e um Volkswagen. Descobriu-se então que tinham sido vendidos por Álvaro, mas antes tiveram que interrogar a mulher do Américo, por cujas mãos passavam todos os pedidos, pois ela era a secretária geral do Departamento Financeiro. Ela não soube explicar, estava nervosa e confessara que apenas mandava datilografar os pedidos e entregar aos despachantes para as devidas providências. Mas a polícia também sabe fazer e desfazer suas teias. Não fora convincente, interrogaram Álvaro logo após. Explicara que os carros vendidos na época tinham as mesmas cotações dos novos, porque ele só fazia as transações quando os preços da Bolsa subiam, isso por ocasião das vendas, na época das compras, esperava os preços baixarem. Também não convenceu muito. O fato é que as marcas tinham sido trocadas. Isto era o bastante para suspeitarem de um grande roubo. Mas o porquê do roubo? Isto é que afligia Américo, sua mulher e Álvaro haviam tramado tudo de comum acordo, era evidente.


          Uma desconfiança surda começara a se formar no seu cérebro angustiado. Eles o traiam. Há quanto tempo? Procurara lembrar-se de todos os movimentos dos dois e quando começaram os cochichos que silenciavam com a sua aproximação. Isto já
contava uns cinco meses. Todos sabiam menos ele. Não, o Jorge tentara chamar-lhe a atenção, mas ele nem percebera do que se tratava. Ora, nem ouvira mesmo o que lhe dissera o despachante. Estava muito ocupado e pensara ser mais uma das intriguinhas das moças do escritório. Nunca dera muita atenção a isso. E agora tinham-no feito de bobo, de simplório, de cretino. // Depois das investigações terminadas, Américo mandara a mulher embora com Álvaro, depois de pedir a discrição da polícia. Passara uma borracha em tudo, nada mais tinha valor para ele. Decidira vender sua parte na sociedade e comprar um sítio bem distante, onde viveria para sempre escondido de todos aqueles que o conheciam. Aquele pavor de outrora pelas aranhas terminara. Agora sabia que elas eram inofensivas. Melhores do que as pessoas. Essas, sim, pareciam aranhas gigantescas, tecendo suas garras ao seu redor. Desacreditara do mundo, dos amigos, da família, enfim, de todos. // A sua mente transformava agora o sonho em realidade e a realidade em sonho. Mas era um sonho diferente. Um sonho que ele poderia manejar e transformar em realidade a qualquer momento. E se deliciava com isso. Agora ninguém mais o faria de bobo, ninguém mais o trairia. Ele era o senhor absoluto das aranhas sob as quais vivera à mercê durante tantos anos. Mas as considerava suas amigas, que poderia trair quando quisesse. // Nunca pensara em se vingar de fato das pessoas que o feriram tanto. Sentia-se incapaz para isso. A desilusão, quando vem abruptamente, torna a pessoa sem ação, parada, desfalecida como naquele dia em que esbarrara na teia de aranha no porão da sua casa.// Agora havia muitas teias que ele mesmo ajudara a fabricar. E as aranhas cresciam e se multiplicavam pela casa toda. Um dia, quando fosse tomado de um desses repentes impulsivos, as esmagaria todas. Mas estava guardando esse prazer para mais tarde. As aranhas estavam todas à sua mercê. Não mais ele!
Victoria Magna
Enviado por Victoria Magna em 25/05/2005
Reeditado em 17/01/2007
Código do texto: T19565