CAOLHO LINGUA DE TRAPO

O barraco do Malaquias era a principal atração da comunidade. Havia dado muita confusão, pois a nêga Vicentina não queria saber daquela idéia maluca, onde é que já se viu um barraco de isopor! Mas quando o Malaquias cismava com alguma coisa, sai de baixo, era duro de agüentar!

E ele argumentava como ninguém!

- Olha nêga vai ficar um brinco, vai dar dor de cotovelo em muito barracão de zinco!
 Vamos quebrar completamente o panorama e mudar a tradição, você já pensou que maravilha, eu já tô vendo o nosso barraco cantado em samba canção: e ele cantarolava: 
                                
                  “não vá pisar nos 
                  astros meu amor 

                  olha a lua prateada 
                  furando o nosso isopor!”


E tanto ele insistiu, tanto argumentou (ele era bom nisso), que o barraco ficou do jeito que ele queria. Ele desfilava orgulhoso pela favela, afinal conseguira mudar alguma coisa, (ao menos no visual) no gueto habitado por gente tão igual, tão conformada, tão presumível, tão necessitada, sem horizontes, sem qualquer perspectiva. Aquilo não era viver, era vegetar!

Com certeza ele iria receber a visita de algum candidato, (era ano de eleição, e sempre aparecia algum prometendo uma cesta básica por mês, se fosse eleito), e era evidente que o representante do povo iria querer ser fotografado ao lado do Malaquias e seu barraco diferenciado.

É claro que Malaquias queria sair na foto, era capaz até dele conseguir colocá-la na capa do seu CD e talvez o futuro edil lhe financiasse a produção. Sabe cume, mídia é sempre mídia e quem não aparece se esconde!

Vicentina passava o dia inteiro lavando e passando pilhas e mais pilhas de roupa (dos outros é claro), enquanto o Malaquias coçava o saco o dia inteiro e ficava lendo um tal de almanaque do Pensamento, já velho e surrado, de onde ele tirava inspiração pra fazer seus sambas.

Até que ele era bom compositor, mas não tinha padrinho e nem grana, e sem jabá a coisa não rola, assim ele só via algum qualquer quando conseguia alguma merreca de adiantamento (“advanced”) na editora. Na verdade ele nem sabia direito o que estava assinando, e também nem adiantaria muito,  pois a situação era sempre a mesma, “ou pega ou larga”, quer dizer, “manda quem pode e obedece quem tem juízo, ou necessidade!”

Quando a noite caia, “ele sempre rezava pra ela não se machucar”, ele se aprumava todo e saia, cheio de razão. Vicentina pelo pouco que conhecia do assunto, já havia concluído que aquele negócio de direito autoral era caso de polícia!

Quando o Malaca (era como o pessoal o chamava) voltava lá pelas tantas da matina, a desavença começava. E Malaquias sempre argumentando:

-Ô nêga eu trabalho tanto, é trabalho de intelectual, modéstia a parte eu sou um operário da arte chegando no recinto do aconchego do meu lar, tentando encontrar a paz, e você toda exaltada, falando cobras e lagartos, botando a boca no mundo, me chamando de vagabundo e outras tantas coisas mais, isto é uma tremenda injustiça!

E a vida do feliz casal seguia neste pé.

Um dia Vicentina desatinou, estava disposta a fazer escurecer o dia, resolveu virar a mesa! Aproveitou que Malaquias havia saído, não passou nem  perto do tanque ou da prancha de passar roupa e ficou a devorar o tal do Almanaque que Malaquias guardava embaixo do colchão. Depois de algum tempo de leitura ela concluiu que não fazia sentido ela dar duro o dia inteiro, e o vagal gastar o seu dinheiro nas transas das madrugadas.

Justamente naquela noite Malaquias extrapolou no exagero, abusou da sorte, pisou em ovos, pois quando voltou pro barraco o sol já estava claro e radiante! Vicentina não deixou barato e foi às vias de fato alegando maus tratos do seu grande amor.

- E tem mais, de hoje em diante tudo vai ser diferente, estou cansada de maus tratos e desfeitas, dessas suas frases feitas e desculpas esfarrapadas. A solução é sempre o X do problema e eu não tô a fim de virar tema de música popular! Não vou sair por aí em ronda pela cidade de boteco em boteco procurando por você!

E o pau comeu solto, foi tanto safanão, foi tanto grito, uma enorme confusão que acabou lá no distrito! Seu delegado então mandou requisitar o Caolho Língua de Trapo, que segundo constava era testemunha ocular do ocorrido.

O problema é que o dito cujo já estava muito louco e todo cheio de filosofia e durante o depoimento falou mais do que devia!

- Olha seu dotô eu num sou nenhum Mané não, eu tô sabendo que é dever de cada um zelar pelo patrimônio e pela legítima defesa do seu próprio matrimônio! Quebrá o pau eles quebra, mas até que se combina, agora, quem tem curpa no cartório é uma tal de concubina!

Vicentina praticamente exigiu que o delegado lhe traduzisse tintim-por-tintim o que era aquele negócio de concubina, e com os olhos cuspindo fogo de raiva achou muito esquisito o apelido que a lei dava para o que ela conhecia de uma forma mais simples, “a outra!”

Depois do depoimento de Caolho Língua de Trapo e da explicação do doutor delegado, Malaquias não teve inspiração para argumentar. Justo ele que gostava tanto!
 
antonio carlos de paula
poeta e compositor

www.antoniocarlosdepaula.com