A visão do muro

Eram um tanto estranhos aqueles três amigos. De sorte é que não pestanejaram quando surgiram monstruosas faces a lhes ameaçar os persistentes distintivos.

Esses cidadãos brasileiros ou jovens do interior paulista, por assim dizer, vestiam os trajes de uma época inundada pelas águas da revolta. De outro lado a inquietação e vivacidade da juventude perpassavam os ecos da rebeldia e da liberdade.

As identidades secretas dos super-heróis a que eram contemporâneos; seus poderes paranormais e suas tramas científicas; muitas vezes tão distantes da realidade, porém, não menos envolventes, povoavam a mente curiosa e visionária de Saulo Luiz Trindade. Os outros dois fugiam um pouco às fantasiosas viagens, contudo, nunca hesitaram em mostrar as afinidades que havia entre eles.

Uma amiga dos três, cuja trajetória não nos cabe agora lembrar, deixou-nos sua versão, garantindo ter presenciado grande parte da história, que segundo ela, assim iniciou naquela tarde de 1979.

Encontravam-se à frente da casa de Raul Peixoto, onde ele lustrava o cadillac do pai com trapos de camiseta. Era sábado, por volta de dezessete horas e meia; o trio inerente relaxava enquanto jogava a conversa aos ares. Entre cigarros e cervejas, de um canto obscuro do abismo humano, surgiu a inconveniente pergunta:

—Amigos; por acaso já se perguntaram alguma vez sobre a música que desejam que seja executada em seu funeral? Dirigiu Saulo esta importuna questão. Não hesitei, é claro, em adornar a frase, que da boca do nosso despreocupado protagonista deve ter soado dentro da linguagem dominante desse período.

Raul e o terceiro rei-mago, ou cavaleiro do apocalipse, que se chamava Joel Barbosa dos Reis, vulgo King; olharam-se rapidamente. O King, sujeito pouco crescido nas maneiras e na estatura, tratou logo de desembuchar a resposta após breve reflexão:

—Goodbye blue sky! Bradou levantando a mão direita.

—Boa escolha King, mas não acha meio óbvio para a ocasião?

—Não queria fazer parte disso, mas deixo testado que desejo silêncio para a cerimônia do meu enterro. Respondeu Raul com um sarcástico sorriso, enquanto voltava a polir o carro.

—E quanto ao Saulo? Insistiu Joel.

—Questionei por não saber...

Ora, que lhes importava tudo isso. Seus corações se preparavam para uma noite repleta de promessas. Conseguiram o carro emprestado em troca da limpeza geral do mesmo e marcaram com um belo trio feminino da rua de baixo. Faltava-lhes apenas conhecer o verdadeiro destino.

Raul e Nazareth namoravam há dois anos. Não estavam longe de um compromisso mais sério. A pouca idade é que dava a ambos a tranqüilidade necessária para mais algumas noites de diversão. Seis meses a separavam da maioridade, enquanto ele, passando dos dezenove, mal sonhava com a união eterna. O sentimento que existia entre eles era verdadeiro, no entanto, não conseguiam camuflar a insegurança. Nazareth estava só esperando a hora certa de dizer a Raul sobre sua vontade de casar, com tudo que lhe era de direito.

Quanto ao Saulo, o estranho, estava se aproximando da não menos excêntrica Tereza; uma adolescente gótica, que apesar da repugnância à vida social, tinha uma grande simpatia. Os dois já se conheciam muito antes daquele singular encontro de sábado à noite.

Temos, entretanto, o terceiro casal. Este na realidade não queria nada além de curtir a vida. Joel e Luisa tinham em comum uma jovial alegria, digna de reconhecimento; embora não levassem nada a sério. Entre eles existia somente amizade, uma dupla inesquecível.

Aqueles seis jovens inexperientes e sonhadores propuseram-se a abraçar as estrelas e colocar o pé na estrada. Meia dúzia de corpos franzinos e agitados surgiu de dentro do automóvel sob os olhares de um bando de rapazes e moças que estavam do lado de fora do salão de baile. Esticaram os ossos protestando o aperto que passaram durante os quinze minutos de percurso.

Não é preciso dizer que King e Luisa dispersaram em dois tempos, desaparecendo em meio à confusão. Nazareth, por sua vez, notou que também Saulo e Tereza haviam sumido. Viu, então, naquele momento a hora certa de dizer algo a Raul acerca de assumir algum compromisso mais sério; enquanto este a distraía indicando uma coisa ou outra.

Aquele dia, doze de novembro, passou despercebido diante dos olhos e dos sentidos; principalmente para os três companheiros. Pouco se sabe do que ocorreu naquela noite, talvez, somente que Saulo passou-a inteira a observar as nuvens sobre o vulto luminoso da lua minguante.

Alguns dias depois se encontraram os três no acaso de um entardecer.

—Saulo, Saulo! Não vai acreditar! Exclamou Joel aos gritos.

—Diga logo, sem cerimônias...

—Pois bem, nosso amigo Raul aqui, está no caminho para a forca.

—Quer dizer que levou a sério a história da música fúnebre? Reagiu Saulo com certa ironia.

—Chega, meus amigos- replicou Raul- vou me casar mesmo. Nazareth e eu ficamos noivos há uma semana.

De fato, foi consumado o matrimônio; em março do ano seguinte. Saulo e Joel apadrinharam o velho amigo. Brindaram o evento com grande satisfação e gestos de companheirismo.

Após algum tempo a amizade duradoura e contínua daqueles rapazes teve afastado um de seus membros. Raul partiu para a capital com a esposa, por razões profissionais, ou quem sabe, outra circunstância; a nós desconhecida. Aos que ficaram restou, além das surpresas do destino, um baú de memórias, ou melhor, um relicário. E não o faço digno de museu devido ao estado em que elas estavam: Volúvel e em esquecimento. Tudo se transformou em poeira; lembranças que o vento leva e traz.

Diz-se, e é provável que Joel desviou do reto caminho entregando-se ao vicio do álcool e outras químicas. Ora libertando-se, ora retornando; passou a viver do som psicodélico de sua guitarra, andando pelos bares e pelas ruas. Na bolsa a tiracolo carregava inúmeras recordações misturadas aos discos de Beatles e Elvis.

Sobre o Saulo foi-nos descrita sua aparência e indicado seu paradeiro. Depois do êxodo de Raul ele se meteu com um grupo de militantes e acabou preso. Livre dois anos depois, passou a viver ilhado e em silêncio; com suas calças boca – de- sino, a camisa multicolorida, colares indianos e sapatos baixos e batidos; exibindo uma longa estrada já percorrida.

Uma garota sombria, moradora do mesmo bairro, vendo-o passar debaixo da janela do sobrado, assim o descreveu numa manhã de domingo em 1982: “Um fantoche do destino, ele é agora; como folha seca na estação dos ventos. Seus olhos são ágeis e fixos, como uma águia perseguindo a presa. O coração é como um prisioneiro que anseia pela liberdade. Suas mãos, porém, não são semelhantes às de um sábio, um herói, ou mesmo de um rei. São parecidas com os membros inferiores de qualquer inseto saltador, prestes a ser pisado por um cavalo a caminho da guerra”.

Ele ficou por algum tempo diante de um muro, o qual devia ter uns três metros de altura; era uma construção antiga, sem acabamento. Permaneceu naquele local, a observar fixamente a parede de concreto, como um Bodhidharma, exceto talvez, pelo objetivo a ser alcançado. Três rumos diferentes, dois extremos. Saulo ficou imóvel entre eles, defronte a um amontoado de tijolo e cimento, que o impedia de ver o outro lado. A única coisa que lhe passou pela cabeça num memorável instante dessa passagem foi o tema de seu funeral. Era uma sinfonia alegre e cheia de arranjos magníficos, entoada por uma orquestra de violinos.

Luciano Osawa
Enviado por Luciano Osawa em 29/07/2006
Código do texto: T204679