Sentidos...

Fico pensando nas músicas e em como elas tocam a cada um de nós de maneira poderosa, quer pela emoção através da melodia e do ritmo, quer pela reflexão através da letra. Quem não relaciona uma música a uma etapa de sua vida ou não cria uma trilha sonora para as pessoas conhecidas? Quando era garoto, costumava cantarolar mentalmente uma música para cada professor meu. Lembro-me de uma música de Guilherme Arantes, que dizia “cheia de charme/ com desejo enorme de se aventurar...” para a professora de História e Geografia. Para professora de Artes (mais tarde diretora do grupo de teatro onde fui membro), Aleluia, de Haendel. Essas são lembranças boas. Mas a música também me faz lembrar de pessoas desagradáveis como “Bota fogo no rabo de quem nada faz. Eu sou povo, me acabo e não aguento mais” para um patrão que tive numa empresa de engenharia antes de ser professor. Parecem gatilhos da memória. Ouço a música e me reporto às pessoas e situações. Lembranças também vêem dos diversos olhares dos compositores para um mesmo tema. É o caso de Brasil, cantado como “terra de Nosso Senhor”, terra de lugares maravilhosos, mas também de violência (“o meu cartão de crédito é uma navalha”).

Os cheiros também disparam a memória. Lembro-me até hoje da alfazema na minha avó Laura. Ela tinha vários perfumes, colônias, extratos... Deixava-os todos enfeitando a penteadeira. Somente usava alfazema. Não havia perfumista no mundo capaz de seduzi-la a usar outra fragrância. Ela comprava outros aromas apenas para enfeitar o quarto dada a arte dos frascos. Só mesmo vovó para fazer isso. Os perfumes ficaram e ela se foi. E com ela o cheirinho bom dessa planta. Parece que quando ela chegava um vento passava num campo desse purpúreo capim, vinha correndo com o cheiro da relva e anunciava a chegada da matriarca da família. Hoje todos em casa usamos diversos perfumes. De tempos em tempos mudamos a marca. Não sei se meus filhos e netos lembrarão do meu cheiro. Cada dia saio com uma fragrância diferente. A genética explica. Meu avô Eurico Carlos vivia banhado em colônias. Infelizmente ele se foi com a volatilidade das essências. Mas sua marca ficou indelével na minha mãe, nos meus tios e em mim. Eu e todos o vimos pela última vez nos meus quatro anos de idade, pouco antes do meu aniversário (eu nem sabia que fazia aniversário). Estávamos em sua casa como os últimos visitantes de sua vida. A família da minha mãe vem das montanhas do Estado do Rio de Janeiro. Meu avô era camponês e migrava na região serrana do Estado plantando o que o solo dava. Assim educou seus filhos com minha avó Geralda. Vagaram, vagaram até Valparaíso, uma aldeia bucólica na curva de um dos afluentes do Rio Paquequer na cidade do Carmo. A casinha ainda está de pé próxima a Cachoeira do Emboque. Só ao escrever sobre a casa dos meus avós, sinto o cheiro do fogão de lenha, prenúncio de uma comida simples e gostosa. Meus avós eram muito pobres, mas tinham grande talento para cozinhar. Esse talento faz parte da herança que deixaram aos seus descendentes. Eu tomei posse da minha parte. Amo cozinhar. Misturar sabores, principalmente os sabores da terra. O milho transformado em fubá, dourado ou branco. A canjiquinha igualmente amarela ou branca. A doce, quente e viscosa canjica grossa da Semana Santa servida em prato fundo sobre leito do queijo fibroso da região, o famoso queijo “de nozinho” (até hoje chamo esse queijo assim. Não adianta me dizerem o nome correto. Pra mim é “nozinho” e pronto). O sabor é inigualável. E a broa da tia Marina? Nunca comi outra igual.

Os sons, os cheiros, os sabores e as texturas são realmente com maçanetas mágicas que abrem portas à memória e a visão. O mais interessante dessas maçanetas é que em dados momentos, de acordo como as tocamos, o efeito é modificado. Um cheiro doce de calda de açúcar pode me fazer sentir imediatamente o sabor de uma cuca de banana. Em outro momento pode me fazer sentir o sabor da compota dessa fruta tão versátil. Há ainda a possibilidade de ver esculturas de caldas endurecidas. Caindo elas craquelam e produzem um estalo característico dessa doce escultura de vidro. Bom mesmo é não ficar imaginando isso tudo por muito tempo. Ótimo é tomar uma porção generosa de uma guloseima e saborear infinitamente por segundos sua prisão entre a língua e o palato. O caminho de fuga da substância banhada em nossa boca é dificultado quando da última porção da sobremesa. A tentativa de eternizar o sabor é sôfrega como num beijo apaixonado de alguém que se despede da pessoa amada para viajar. Formou-se a cena em tua mente? Os amantes se beijam com ardor. As malas estão no chão ou caíram das mãos de um deles? (Interessante nenhum ladrão passar nessa hora). Se for no cinema, a câmera girará e mostrará o casal sob diversos ângulos e os figurantes desfocados. Fico querendo sentir a maciez da lã ou do veludo dos casacos (não sei porque quem viaja sempre leva casaco. Deve ser porque é aconchegante ou porque a cinematografia a que estamos habituados vem de países de clima frio). Quero tocar os cabelos da moça. Tirar o rapaz da cena e ficar em seu lugar (se não estiver indo para a guerra, claro!). Depois quero pular do trem, ficar pendurado no bonde, andar correndo por dentro do vagão do metrô, deixar minha cabeça de olhar triste e grave pender junto da janela do avião cortante de nuvens ralas, quero debruçar-me na murada do navio com olhar longo para ela no porto, gritar para o motorista do ônibus parar numa freada brusca e descer correndo pelas escadas, saltar do táxi sem mesmo pagar a corrida depois de uma perseguição implacável até a esquina numa fechada digna de multa e dar-lhe o beijo irresistível com todo o gosto, o cheiro, farfalhar de cabelos e sensações indescritíveis por inteiro. Na maioria das vezes não enxergamos nada. Os olhos estão fechados para o prazer do corpo. A alma nesse momento contempla tudo serena ou aflita e dá repouso ao olhar.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 25/01/2010
Código do texto: T2050576
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