Atrás daquela porta

Eu já estava acostumada com o barulho; ele só ouvia hardcore, dia e noite sem intervalos. E pintava. Ele era um artista independente, pintava camisetas e escrevia letras de música para os amigos, porque não sabia tocar nada. Mesmo com o som alto eu podia ouvi-lo trabalhando através da parede fina que separava nossos apartamentos e nossas vidas. Ele nunca falava comigo. Me encontrava no corredor e só acenava com a cabeça. Um dia, analisando o lixo, descobri que ele tomava muito leite, eram caixas e mais caixas depositadas na lixeira. E ouvia muito hardcore. Enquanto ele pintava eu escrevia nossa história, palavra por palavra não dita, e cada uma delas ao riscar a folha de papel onde ficaria para sempre também riscava meu coração. Minha mãe dizia pra eu achar alguém inteligente e com um bom trabalho, alguém que pudesse me garantir um bom futuro. Com certeza ela reprovaria o cara que eu escolhi pra mim. Até mesmo o cara que eu escolhi me reprovaria. Ele pintava sem parar. E ouvia hardcore. E eu escrevia nossa história: “ontem nos encontramos no elevador e não pude resistir... agarrei-o e beijei-o com violência, sem tempo para reagir, ele só pode corresponder ao beijo. Ele me agarrou também, com toda a força de seu corpo musculoso e me mordeu os lábios carinhosamente, puxou meus cabelos com delicadeza e ficou ali, me beijando, passando sua língua na minha, sem o menor pudor, sem perguntar quem eu era ou o que queria... E quando as portas do elevador se abriram a magia acabou. Os braços se soltaram, as bocas se distanciaram e foi como se nunca tivéssemos nos visto antes. Cada um tomou seu próprio caminho...”. Já é tarde, posso ouvi-lo bocejar de cansaço, mas a música continua tocando infinitamente. E eu escrevendo nossa história... não era um romance, era um acesso de raiva. Em apenas dez segundos poderia chegar à porta dele e bater, mas os passos eram longos demais. Melhor colar o ouvido na parede e esperar decorar os sons que ele fazia. Pensei em pintar as paredes para diminuir o contato, mas não valia à pena. Risquei algumas palavras sem saber por que estavam ali. O hardcore me tirava o sono, mas o silêncio do meu apartamento era capaz de trincar os espelhos; azar. Nossa história vai fazer aniversário. Acho que vou tomar um copo de leite.

Joana Masen
Enviado por Joana Masen em 25/01/2010
Reeditado em 05/02/2010
Código do texto: T2050850
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