Nem sempre, as sombras são...

Terezinha Pereira

A procissão ameaçava sair. O Cristo morto já era acomodado no esquife. Meio a multidão coberta de luto, o ruído seco das matracas se espalhava. Cada devoto levava sua vela já acesa. De cera ou de espermacete? Tal rebuliço me tornava abrandado, como também o percorrer do séquito pelas ladeiras da cidade, iluminado pelo bruxulear de velas, lanternas, tochas. De onde eu via o movimento ficava a pensar no quanto era-me aprazível ver aquele povo todo unido na praça. Nisso, as luzes dos postes se apagaram e um vento veio assim de brusco. A princípio, assoprou de manso. Então, vieram redemoinhos levantando cisco do chão, ninguém sabia onde se abrigar. Voaram chapéus de palha, chapéus de feltro, véus pretos das senhoras, véus brancos das donzelas. Se era meados de abril... Sei não. Do parapeito da escada da Escola de Minas, tinha visão da praça por inteiro. Xi! Um sopro vigoroso fez extinguir quase todas as chamas. Restou uma aqui, outra lá. Nem podia mais avistar o cortejo do senhor morto. Verônica , essa só podia ter-se exalado, sudário e canto.

Restou-me contemplar a praça vazia. Tiradentes, lá do alto de seu posto de guardião, tinha ares de que nem se apercebera daquela agitação incomum do vento, que fazia por dispersar a multidão de fiéis ali disposta a acompanhar, vez outra, o féretro do Cristo que havia sido morto na cruz, para pagar os pecados do homem. Ouvi quando o padre falou em voz muito alta, poucos escutaram sua fala, que o microfone estava mudo. Vão todos para casa. Em ordem. E lembrem-se de rezar e pedir perdão pelos pecados. São os pecados dos homens que fazem com que Deus desperte tamanha fúria na natureza num momento desses. Trovoadas e rabiscos de raios no céu chegaram no repente e apanharam o povaréu a debandar. Eu podia jurar que, há um minuto atrás, digo, há dez minutos atrás, bem, não sei mais há quanto tempo, o céu estava assim, pintadinho de estrelas, a lua cheia brilhava no céu. Praça deserta, notei que alguns fiéis, ainda de velas acesas, desciam rumo ao Pilar. Saí de onde estava e fui até a esquina. Contei sete velas acesas. Corpos vestidos de negro, cabeças cobertas por véus negros. Silhuetas esguias, de estatura alta e compleição forte. Iam, os sete, ladeira abaixo. Chovia forte. O vento não abrandara o suficiente para deixar pavio de vela acesa. No entanto, sete chamas tremulavam. Vendo aquilo, me veio um daqueles calafrios próprios de meninos quando ouvem casos de assombração, contados pelos mais velhos. Coisa pouca essa, que não me tirou a resolução de acompanhar o destino daquelas luzes. Nesse tempo, vi que os sete fizeram algumas rezas, algumas evoluções. As velas acesas, os rostos velados. Depois, montaram guarda ao redor da igreja. Um, postou-se próximo à porta da frente, três do lado que dá para o Chafariz e os outros, do outro lado. Estava que era um breu só. Só via as chamas. De ruído, um matraquear de compasso lento. Encarei a cena de frente, dos lados e fui me amoitar detrás do Chafariz, de onde só via quatro deles, melhor, a luz de quatro velas. Meu corpo cansou de ficar ali, estacado e foi-se amontoando no chão. Nem ligava para a chuva. Sei que, quando dei por mim, o dia já começava a ser claro. Primeiro, fiquei pensando onde eu estava. Depois, olhei para a frente e atentei para a lateral da igreja. Gente, nenhuma. Pudera. No sábado santo, não há celebração de missa. Veio-me à idéia a ventania, a chuva. Apalpei a roupa do meu corpo. Roupa, chão, plantas, árvores. Tudo seco. O céu prometia um dia iluminado. Levantei-me para pegar um pouco da água do Chafariz para espertar o rosto. Então, notei umas chamas perto das portas daquele lado da igreja. Andei até lá. Sabe, daquelas lanternas usadas em procissão? Fui contando: uma, duas, três, mais uma na frente , bem de frente a porta principal e mais três do outro lado da igreja. Tochas, lanternas, velas, seja o que for. Fincados no chão e acesos. Lembra daquele calafrio de que falei, calafrio que menino sente quando ouve casos mal-assombrados? Além de calafrio, senti os cabelos do corpo se eriçando, suor descendo espinha abaixo, tremedeira. Era dia claro. Mas, eu desandei numa carreira, acho que, de tão grandes as passadas, nunca gastei tão poucos passos para chegar lá na Barra.

Já contaram, ouvi por aí, que alguma vez, em alguma sexta-feira da Paixão, haviam achado umas tochas, assim, assim, diferentes das de uso na cidade, rodeando a igreja do Pilar. Tem gente que diz que pareciam daquelas, de canzuá. Tem gente que conta que ali haviam visto lanternas que mais pereciam coisas que não eram desse mundo. Via das dúvidas, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, beijinho na mão, cruz no pescoço, só ando por aquela região do Pilar, dia claro, de preferência, acompanhado. Que a Senhora do Pilar me dê o perdão, que da pinga, pago promessa, nunca mais eu bebo aquele gole que é de oferecer ao santo.

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 29/05/2005
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