LICO

Acordou com o sol e o cão lambendo a sua cara.

Apalpou o bolso, sentiu o maço de cigarros amassado e o pênis duro. Deu a volta e, atrás da árvore, urinou aquele mijo grande.

Aliviado, lavou o rosto na torneira do lava-jato, agradeceu e foi tomar café no bar do Quincas, de onde se vislumbrava, como um postal, a Baía de Guanabara.

Aquele seria o dia! Tinha dezessete, mas parecia beirar os trinta: sofrimento de rua!

Às nove, encontrou o Ditão; Cara-Metade e Alfabeto estavam descendo o morro e vinham, a meio caminho, queimando fumo. Os quatro se encontraram na entrada do supermercado.

--Alguém encagaçado? perguntou Alfabeto, 22 anos, quatro mortes nas costas e líder da ação.

Olhou na cara de cada um e sentiu firmeza.

Lico não demonstrou medo, mas por dentro tremia como a gelatina que a tia Esmeralda preparava no abrigo... Abrigo que tinha alimento, banho, dormida, mas também, hora certa para tudo e ele queria liberdade, ser dono de si.

-- Vamu repassá o plano! Com Lico vigiando, a gente entra e atira logo se o segura se coçá. Ditão corre nas caixa e faz a limpa com Cara-Metade. Eu fico na cobertura com as bala doida pra saí e quebrá os boneco fardado. A gente entra meio-dia; cinco minuto depois Vadinho vai passá com o possante; é corrê e pulá dentro, com a grana e os malote. Ainda falta muito, vamu relaxá!

Cada um tomou uma direção.

Lico foi jogar vídeo game, olhar as roupas e os tênis de marca. Matou todos os inimigos no jogo e saiu feliz da loja, como um vencedor.

A tensão nervosa estava tomando conta dele; vieram muito cedo para o encontro.

Alfabeto voltou para o morro para descansar e conferir as armas.

Na subida, encontrou Vadinho que já tinha descolado um quatro portas com ar, direção hidráulica e motor turbinado.

-- Meio-dia e cinco, estou na porta do banco.

-- Beleza, Vadinho!

Lico dobrou a esquina, tirou um cigarro do maço, acendeu e saiu jogando as baforadas no ar.

Ele ria um riso nervoso, apreensivo, firme na esperança de que tudo desse certo. Estaria dando um passo muito grande? pensou.

Desde os dez anos estava na rua, fazendo pequenos ganhos , surrupiando os velhinhos, os distraídos e até junto aos automóveis que paravam no sinal; lembrou do Paulistinha, que chamava sinal de semáforo e levou um balaço no meio das ventas, quando chegou junto àquele carro, no sinal da Visconde de Pirajá.

--Se chamasse semáforo de sinal, será que o Paulistinha morreria? O que está certo? É sinal, semáforo ou farol? O Cabeção diz que é farol. Deixa pra lá...estou ficando biruta.

Olhou o relógio que Alfabeto lhe deu; Alfabeto deu um para cada um, da mesma marca, relógio bom, igual ao dele, e todos certinhos na mesma hora. Eram 10 h e 45 min.

O despertador tocou, 10 h e 45 min.

Alfabeto acordou, acendeu um cigarro, abriu o zíper da bolsa azul e conferiu as armas: três 38 e a pistola 45 que sempre o acompanhava. Olhou para as pernas da Sônia, aqueles dois pilares morenos monumentais que, em subida, terminavam na asa negra delirante de seus dias.

Realmente, ela era a mulher da sua vida, sua grande paixão e por ela se arriscaria naquele tipo de assalto, que todo bandido sabia que era de matar ou morrer.

Lavou o rosto, botou uma roupa de bacana, apanhou a bolsa, beijou o seu amor e desceu a ladeira; pegou um táxi e às 11 h 50 min, distribuiu as armas no banheiro do supermercado.

Todos estavam bem vestidos, com exceção de Lico que, de bermuda, sentiu o frio do aço em sua barriga, quando ajeitou o revólver por baixo da camisa.

Sete minutos depois, Cara-Metade entrou no banco sem arma; dominou, por trás, o segurança da porta giratória e Alfabeto meteu-lhe um tiro na barriga; rápido, atirou na cabeça do que estava de escopeta, no fundo do banco.

Começou uma gritaria dentro da agência, as pessoas temerosas se jogaram no chão.

Alfabeto entregou o 38 para o Cara-Metade que fez a "limpa" nos caixas com Ditão. Eles encheram os bolsos de dinheiro, apanharam os malotes e, no meio da confusão , atiraram para o alto. Alfabeto puxou um funcionário, ficou por trás, o fez de escudo, deu um pontapé no ponto certo da porta e desmantelou a trava.

12h 05 min, Vadinho estava na porta do banco.

Lico, da calçada, na cobertura, foi para dentro do carro com o 38, apontando para todos os lados e berrando como um louco. Alfabeto surgiu na calçada , empurrou o funcionário para o lado e correu para o carro; não deu tempo, caiu com um tiro na testa.

Ditão e Cara-Metade jogaram os dois malotes bem perto do carro. Lico abriu a porta, apanhou os sacos pela alça e quase leva a sobra de uma saraivada de balas que "peneiraram" o Cara-Metade e o Ditão.

Vadinho acelerou, conseguiu passar com o sinal aberto e partiu da Estrada do Galeão para a Linha Vermelha.

A adrenalina estava a mil, o carro a duzentos com a turbina zunindo redonda.

Lico e Vadinho eram um riso só, uma gargalhada nervosa, alegre, vitoriosa, triste, com lágrimas pelo rosto dos dois, deixando gotas pensantes de infâncias surradas.

No galpão abandonado do Jardim Primavera, esconderam o carro e abriram os malotes. Em um deles, cerca de dois mil reais, cheques e ordens de pagamento; dividiram a grana e abriram o outro malote: quase três milhões em maços de cinqüenta e cem.

Ficaram atônitos, estupefatos com tanto dinheiro, um olhando para a cara do outro, e por fim, quando se recuperaram da surpresa, se abraçaram felizes. Deixaram a grana na mala do carro e mudaram de roupa: calça, tênis preto e camisa branca.

Lico fez uma fogueira discreta, regada à gasolina para consumir rápido os malotes vazios, cheques, papelada bancária, roupas e tudo aquilo servível para a polícia.

Na Washington Luis apanharam um ônibus para Caxias. Almoçaram e fizeram compras no shopping.

Mudaram de vida.

Mudaram os meses.

Passaram três anos.

Lico conferiu a hora no relógio que Alfabeto lhe deu. Ele vai muito bem com sua loja de auto-peças.

Vadinho viajou para Miami.

Elysio Lugarinho Netto
Enviado por Elysio Lugarinho Netto em 01/08/2006
Reeditado em 17/10/2008
Código do texto: T207161
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