Produção do Tempo - Nono Dia

Imagino, possivelmente não é real, ou há uma osmose quase perfeita entre os dois planos. Aliás, é sempre assim.

Uma estrada como um vale alcatroado. A margem direita perde-se num espelho sombreado. Um rio, ou o mar, um espelho. O dia apresenta-se nublado e aquela superfície confunde-se com o céu. Existe como uma máscara de névoa. Com algum esforço, aquela superfície talvez seja a margem de outra estrada.

A margem esquerda está invisível. Ali, na paisagem global, mas invisível. Imagino uma margem invisível. E, no entanto, há uma sombra azul sobre a estrada, a sombra dessa margem invisível.

Uma relva imperfeita é a orla do alcatrão. Árvores esguias pontuadas assimetricamente, como se um sentido houvesse para perceber uma intenção. Procuro o significado, encontro o meu próprio significado daquele silêncio verde num dia nublado. Olhei as árvores, a sua composição aleatória, a presença breve do que passou breve para quem passa. Porque uma estrada, como esta, é um lugar que se passa, como uma palavra dita, um som que não se repete, um fundo mais fundo que se afasta. Olho para trás de mim que passo, pela estrada. O fundo que se afasta. Mil vezes se. A estrada que passa. Olho para o fundo da estrada que foi, olho para o fundo para não sentir saudade.

Ao longe onde estarei. Mais ao longe. Uma placa indica uma localidade. A distância a percorrer para chegar a esse destino. Um destino que se aproxima menos distante. Menos distante quando acelero, as árvores mais breves, mais rápido o vento, as margens, o próprio dia nublado cumprindo o dia. Sempre em linha recta ou quase. Agora a luz da noite. Luzes dispersas para além das margens. A do rio ou do mar. Um espelho de névoa gravado por sombras. E mesmo a outra margem invisível reflecte luzes de lugares possíveis. Todos os lugares possíveis onde nunca irei. Outras placas, outras estradas, alguém que passa anónimo, outras sombras num dia enevoado e as árvores e o mar e o rio estarão como sempre na sua posição eterna.

Descrevo-te uma estrada como um vale alcatroado. Não sei se imagino, as margens invisíveis e visíveis talvez existam, talvez exista muito mais do que posso imaginar, um destino onde se chega para partir. Uma placa indica uma cidade. Muito mais do que posso imaginar ficou para trás, ao fundo do que passa. Esta realidade entre dois planos, o que sei descrever e o que está suspenso – nem sei – para ser descrito. Muitas placas para nos indicar a realidade, nomes que nos orientam entre o caos. Talvez exista muito mais do que posso imaginar ou nomear. Descrevo apenas a partir do que tenho, as palavras.

Descrevo-te uma estrada por onde passei – nem sei. Num dia enevoado, correndo para atravessar a noite até um destino que passa.

Descrevo-te uma estrada – para começar.

Descreve-me personagens que pudessem ter sido.

Descreve-me personagens que pudessem ter sido eu - para começar.