BRINCANDO DE CASINHA

Sonhei que ele vinha aqui em minha casa, empurrava o portão velho de madeira que range, chamava-me, Suely, Suely, vim brincar com você. Com aquele cabelinho dourado, aqueles olhinhos azuis tão grandes, o queixinho proeminente. Um lindo menino – ouvia sempre mamãe dizer, agarrada assim ao braço dela, ao portão, olhando a rua devastada pelas folhas que o vento do outono trazia.

O verão acabou, dizia ele do seu portão, bem arrumadinho, já de banho tomado, e contava, mas contava para mamãe, nem mesmo me olhava, e eu abaixava meus olhos de peixinhos, contava que passara as férias de verão toda à casa da avó em Cabo Frio. Praia, sol, surfei, dizia atropeladamente, salivando, os olhinhos virando para um lado para o outro. Sabia que eu sei surfar Dona Janete? E mamãe sorria, admirada, é mesmo, mas tão menininho ainda, quantos anos, e ele respondia, vou fazer doze dona Janete, vou fazer doze anos em agosto. Mas já, ainda ontem era um menininho assim, Deus, como tempo corre, como o tempo corre, e perguntava por dona Sandra (mãe dele), e ele dizia com muito orgulho que a mãe estava dormindo para cantar a noite. Minha mãe é cantora, a Senhora sabia; Sei sim, respondia mamãe com um sorriso, inclinando a cabeça, enternecida, que menino lindinho, e a mãe é cantora, o pai pianista.

Vou ser professora, dizia eu para ele nesse sonho, e ele pegava a minha mão ensinava como segurar com firmeza no lápis e traçar uma letra, uma letra bem desenhada era o que podia ser no caderno de caligrafia. Ah, eu amava sentir a mão tépida dele sobre a minha pequenininha, gélida pelo alvoroço de estar tão perto dele. Mas sonho tinha esta atmosfera irreconhecível, confusa, eu sabia que tudo era um sonho, e quando acordei queria que o sonho voltasse, olhando o dia clarear aos poucos pela janela, entre a cortina semi cerrada, o raio de claridade tomando tudo, dando o tom real da atmosfera que me cercava. E naquele sonho aonde estávamos? O que nos rodeava era... Perdi, perdi para sempre, mas sinto a mão dele tocando a minha, parecia tão real, a voz dele entrando, dizendo, Suely vim brincar.

A casinha de bonecas, sob aquele dossel armado com lençol entre o toucador e a cômoda, e sobre o tapete o conjuntinho de chá com as xicrinhas de plástico branco com desenhinhos de florinhas vermelhas em relevo; o bulezinho de plástico branco com rosas vermelhas em relevo. Tudo tão bonitinho, junto com as seis bonecas louras e morenas, duas de rosto de porcelana, almofadinhas enfeitadas com coelhinhos. Tomei sobre o regaço a bonequinha loura de rosto de plástico, com vestidinho azul e toquinha da mesma cor. Os dedinhos frágeis, moles, os olhinhos azuis, azuis de contas de vidro, como os olhos dele, Michel, o menino tão lindinho, filho da mãe cantora e do pai pianista que morava ali quase em frente, mas que nem a olhava. Menino metido, disse Telma que vinha às vezes brincar. Não, não Telma, ele não é metido, é porque a mãe é cantora, o pai pianista. Telma pegava assim uma boneca, uma de rosto de porcelana, levava ao colo, alisava a franja, ficava fazendo um momo com seus lábios grossos, que vovó chamava “beiçuda”, “negra beiçuda”, e dizia, está bom, pai pianista, mãe cantora, é prostituta e cafetão, isto sim. Aquilo era de assustar, nessa hora eu tive vontade de concordar com vovó, e gritar na cara de Telma, que ela era uma “negra beiçuda” mesmo, “negra beiçuda”, mas fechei os olhos, respirei fundo, e disse indagando de onde tirara aquilo, ela, Telma, onde ouvira isto. Meu pai que disse, meu pai que disse, respondia bicuda ainda, bicuda era o que mamãe dizia dela, rindo, achando-a até engraçadinha, não concordando com todo aquele menoscabo de vovó, todavia desculpando, vovó afinal era uma mulher do século dezenove.

Arre estava mesmo com raiva de Telma, dizer um descalabro daquele dos pais de um menininho tão lindo como Michel, isto que não, e ela continuou dizendo, aceitando o chá de brincadeirinha que eu a servi numa das lindas xicrinhas , que pagavam o colégio caro do “moleque” – usou “moleque” com uma petulância, “negra beiçuda” (não pude conter) – com o dinheiro “sujo”, sim dinheiro “sujo”. Dinheiro “negro”, disse e ela me olhou, mas sem espanto nos olhos, tal como se não quisesse aceitar a ofensa que sabia.

Seu pai está levantando falso, Telma, disse, o coração aos pulos, de raiva, vontade de arrancar aquele “beiço esticado”, tentando me controlar, mas ela teimou, tinhosa, era como minha avó chamava porque aceitava os bolinhos, e pegava com aquelas mãos “negras”, minha avó dizia com nojo e só faltava jogar os bolinhos tudo na lixeira, cuspindo para o lado. Assustava-me. É pecado levantar falso testemunho, disse para que ela apressasse em mudar de tom de voz, de opinião, mas ela continuou insistindo, depositando a xícara ali na bandeja, sob o teto da minha casinha, então não tolerei mais, quando ela riu dizendo que esse Michel estava se tornando um “bichinha”, um” bichinha” mesmo; Isto que não Telma, disse revoltada, um nó na garganta, e ela refutando com sarcasmo, que não via o jeitinho dele de virar os olhinhos, pois sim o pai dela sabia de “coisas” daquela família, ela que não ia contar, eram coisas “podre”, enfatizou bem o “podres”, assim aguçando o som do P.

Saia da minha casa, saia agora – disse a ela, descontrolada, tomando-lhe a boneca que ela cismava a afagar – saia sua “negra beiçuda”, invejosa – e os olhos dela arregalaram se espanto, indignação, brotavam lagrimas amiúdes de seus olhos abuticados – nem quero que toque em minhas bonecas com essas mãos “negras e sujas”.

Ela levantou-se transida de terror, sem conseguir falar, gaguejando tremula, os olhos piscando e gritei com todos pulmões que fosse embora, fosse, agarrando meu vestido com as garras que queriam dilacerar a boca infame.

Mas eu que brinco com você – disse por ultimo, abandonando o quarto a casa numa desabalada carreira, topando com mamãe que pareceu querer dizer algo, mesmo pareceu-me ouvir mamãe ir atrás dela, o portão bater forte, meu coração em suspenso, e olhei pela janela e mamãe estava mesmo ali a sala, porque entrou dali a instante, e agarrada a uma boneca, olhando para a janela, evitei os olhos debulhados em lagrimas e para disfarçar a voz amargurada dei uma gargalhada para dizer que apenas disse a ela que queria brincar sozinha aquela tarde, apenas disse isto mamãe, Telma se ofende a toa, é bom que ela foi logo, vovó não gosta dela aqui em casa,e essa casa é de vovó.

Será que mamãe baixou os olhos, tristes?

Rodney Aragão.