Ecos de Clarisse

Eu sou um pária.

Falam de mim o que de fato sou. Dizem-me um rato. Ratos não agem como ajo. Ratos enojam-me, mas são fiéis aos seus posicionamentos. Escondem-se, entocam-se e, enfim, fazem o que tem de ser feito. Não eu. Sou um pária.

Clarissa não mereceu, mas não por isso que deixei de fazer o que fiz. Clarissa pediu-me do jeito que imaginei que fosse fazê-lo. O engraçado é que nunca soube que Clarissa era Clarissa. Pensei que fosse Clarisse.

Faz toda a diferença. Clarissa! Clarisse! O Clarisse é menos óbvio, mais pensativo. Culpa dela. Em parte a culpa foi dela. Cansei de descer as escadas e encontrá-la na altura do pilotis. Bom dia, Clarisse. Bom dia, ela dizia. Deveria me corrigir. Se não o fez, se não o fez durante esses anos todos, é porque não sou importante, não pareci importante para ela. Clarissa! É Clarissa! Seria diferente.

A televisão estava cansativamente ligada. Um filme, dois, talvez. Tons de azul refletiam na parede que um dia havia sido branca. Palavras confusas, desconexas. Lá embaixo as mesmas sirenes de sempre. Era estranho ser vizinho da Santa Casa. Era estranho imaginar que se eu furasse a parede do meu quarto poderia dar de cara com as gavetas dos legistas ou mesmo com o almoxarifado. As ambulâncias eram estridentes e eu era capaz de distingui-las. Seis no total. Todas, sem exceção, saiam cantando pneus. Desliguei a TV. Essa é outra coisa cansativa. Estou sem controle remoto e levantar para desligar a TV é algo que em nada me engrandece.

Antes do deitar fui comer algo. Dois tomates sem as sementes. Cuidei de tirar as manchas escuras (recuso-me a guardá-los dentro da geladeira, por isso apodrecem), misturei azeite, catchup e um pouco do que sobrou de queijo ralado. Ia apagar a luz quando tudo aconteceu.

Um barulho. Não, mais. Um estrondo na escada. Primeiro a queda de muita coisa de ferro, panelas, talvez. Depois gritos, muito gritos. Clarisse!

Expliquei que a ferida aberta poderia cicatrizar se ela passasse uma pomada qualquer. Sangrava bastante, mas não era nada demais. Uma pequena atadura, um simples curativo e pronto. Parou de chorar quando trouxe um pequeno copo de água. Agradeceu-me com sorriso. Botei a mão entre suas pernas, senti o calor de seus pelos.

Nunca entendi as mulheres. Clarisse é linda. Olhos lindos, verdes, vivos.

Queria sentir vida. Vida. Vida, no sentido de vivacidade, de algo pulsante, contínuo. Entrava e saia de seu corpo. Quente, histericamente quente. Suava em cima de seus seios já rasgados, de seu ventre combalido de tanto debate. Clarissa não se disse Clarisse. Soube depois. Documentalmente.

Não sei se desligo a televisão. Hora do jornal. Gosto dos jornais da madrugada, das notícias dos jornais da madrugada. Desliguei. Nada mais. As seis ambulâncias estão na rua. Pessoas morrendo.

Silêncio na rua e barulho aqui em casa. Ecos de Clarisse. Clarissa! Rato. Chamou-me de rato. Até ela. Acho que de verme também. Falava-me com ódio. Pouco. Repulsa. Admito a repulsa. Sou um pária, já disse e repito caso necessário.

É necessário?