Onde as Imagens / Produção do Tempo - Décimo Primeiro Dia

Escrevo no centro de uma praça, sentado a uma mesa e há sol e há vento para eu escrever o vento. Não faltam palavras, objectos vulgares para quem escreve sentado a uma mesa num centro de uma praça. Não faltam imagens, a percepção imediata do que vejo e descrevo mentalmente, não faltam imagens de outros lugares onde estive a recolher imagens para um dia escrever no centro de uma praça. E, e há ainda imagens do que nunca vi, mas evoco na invenção de evocar imagens. Este é um caminho possível. Ou decantar apenas alguns contornos e deixar que as imagens e as palavras me escrevam com os dedos que já não são meus.

Um dia, um dia houve o mar, talvez fosse aquela marginal onde iam acabar as grandes ruas, talvez os edifícios fossem altos e o sol desaparecia mais cedo naquelas sombras prolongadas no asfalto. Talvez a casas fossem térreas e podia-se ouvir sempre o mar, mesmo que as janelas se fechassem. Uma multidão corria ao fim da tarde, no desejo apressado de recolher a vida na intimidade das paredes vulgares de um quarto. Ou não havia ninguém ao fim da tarde, e eu podia ouvir o mar entrar no meu silêncio, o mar na intimidade da minha alma vulgar. E a razão de falar da alma é apenas porque gosto da palavra e nada mais, nada mais há na alma que a beleza da palavra alma. Então o mar entrava nas minhas palavras, entrava pelo átrio do silêncio. Entrava para escutar as palavras que escutavam o mar. Por isso a alma vulgar, as minhas palavras são o mar quando falam do mar. Nada mais vulgar.

Foi assim, àquela hora, ao vento recôndito da noite. Não sei se vivi essa noite depois da ida do sol, não sei se o que evoco é apenas a vontade de ter vivido essa noite. As imagens fluem por dentro de outras imagens. Talvez esta praça não exista no presente, a luz do sol me confunda, a claridade que irradia seja a luz distante dos navios, os candeeiros erguidos no cais das ilusões que partem. Todas as viagens são ilusões. Pessoa dizia que todo o cais é uma saudade de pedra - a ilusão, a saudade.

Escavo as palavras sentado a uma mesa. À minha memória vem a memória de todas as imagens. Nela já estão as imagens do futuro. Os jardins que nunca vi, as aves passeando pelas salas de uma casa de portas abertas ao vento, as folhas por varrer nos quintais de paredes de cal, as mulheres tão belas como mulheres, a neblina azulada da aurora, o mar a entrar no meu silêncio, as palavras mais reais do que a realidade, a solidão dos bosques, os lagos longínquos de um sonho, aquelas hélices na querida Irlanda, Nietzche e Joyce e outra vez Pessoa, nós deitados esperando o crepúsculo num hotel da marginal, eu no centro de uma praça, sentado a uma mesa, agora, quando o vento pela noite me entusiasma, quando tudo são outras imagens, quando tudo é muito mais, para entrar no átrio das folhas futuras.

Tudo sempre muito mais por escrever do que por viver.

Talvez.