UM CAIPIRA VALENTE - 2. Aventura.

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Um cavaleiro chegou pela estrada de terra por detrás da rodoviária da cidade. Amarrou seu cavalo numa árvore. Caminhou em passos lentos até a lanchonete. Estava com sede. Encostou-se num canto do balcão, pediu um refrigerante. Olhou ao seu redor; pouco movimento de pessoas e ônibus. Alguns meninos vendiam picolé em caixas de isopor, dois taxistas esperavam ansiosos por passageiros, conversavam do lado de fora de seus carros velhos.

— Moça — disse o cavaleiro junto ao caixa, tirando o dinheiro para pagar o refrigerante —, o festivar acabô qui dia?

A jovem riu pelo jeito dele falar.

— Durou apenas três dias, senhor. Se o senhor veio se inscrever, já passou da hora.

— Naum. Num vim fazê ficha, naum. Pricuro minha fia. Ela veio cantá no festivar e num vortô pra casa — seus olhos brilharam ao ver uma carteira de identidade no vidro do caixa.

— Talvez... — tentou falar a garçonete.

— Esse dicumento é da minha fia. Ela teve aqui. A senhorita pode adevorvê pra mim?

— Se provar que é o pai dela — disse a moça, recebendo dele o dinheiro do refrigerante. Ele tirou sua identidade. Ela conferiu a filiação. Então, entregou a ele a cédula de identidade junto ao caixa.

— Porque não procura a polícia? Vá até a delegacia e dê queixa.

— Boa ideia. Vô pricurá o delegado. A senhorita se alembra quando ela esteve aqui?

— Bem, meu senhor... atendemos muita gente. Deixe-me ver... creio que achei esta carteira de identidade aqui no chão, na noite anterior ao festival. E, se não me falha a memória, a pessoa da foto havia feito um lanche e saiu. Uma morena muito bonita.

— É minha fia. Minha Patativa... Ela canta muito bem.

— Por que o senhor não vai também à Secretaria de Cultura da Prefeitura! Eles é que organizaram o festival. E, creio que todos os inscritos devem passar por lá, assinar alguma coisa ou pegar algum papel.

— Tá bão! Vô fazê o qui me dice. Gradicido.

Momentos depois, com certa timidez, e abanando a poeira de seu chapéu, entrou pela prefeitura. Suas botas faziam um barulho ímpar pelos corredores, notado por todos, que olhavam para aquele homem moreno, barba por fazer, um chapéu surrado na cabeça, faca na cintura e roupas de vaqueiro.

— O que deseja senhor? — perguntou uma funcionária.

— Um favor, sinhorita. Minha fia veio cantá no festivar de músga, ainda num vortô pra casa. Achei um dicumento dela na lanchonete da rodoviária. Pode dizê se ela teve aqui.

— Qual o nome dela?

— Bianca Ozóro da Conceição.

— Bianca Ozório da Conceição. É isso?

— Sim, sinhorita... Todo mundo chamela de Patativa.

— Bem, senhor — disse a funcionária, remexendo alguns papéis —, ela não assinou a ficha aqui, nem pegou a liberação e, sem isso, não poderia comparecer ao festival. A taxa foi paga pelo correio, mas a ficha dela não foi retirada aqui. E... somente ela, poderia assinar e pegar a ficha de inscrição.

— Isso qué dizê...

— Quer dizer, que ela não esteve aqui na Secretária da Prefeitura para oficializar sua participação no festival, nem assinou a ficha, nem pegou os documentos necessários. Sinto muito!

— Tá bão — disse, coçando a cabeça. — Eu vou pricurá o delegado. Gradicido.

— Por nada, senhor — vendo-o sair, preocupado.

O lindo cavalo baio foi amarrado no poste perto da delegacia.

— Eu quero falá cum delegado.

— Ele esta ocupado. Pode falar comigo mesmo. Qual o problema?

— Eu ispero.

— Não quer adiantar as coisas? Eu faço as ocorrências.

— Vai arresorvê meu problema de veiz, ou eu vô tê qui arrepiti de novo pro delegado?

— Depende...

— De quê!

— Da gravidade do caso...

— Minha fia sumiu!

— Há quanto tempo ela esta sumida?

— Cinco dia...

— Hummm... O que aconteceu?

— Ela veio pro festivar...

— Festival...

— Pode cê... Achei um dicumento dela na lanchonete da rodoviária, sinar que ela chegô inté aqui... e ela num assinô a ficha na prefeitura.

— Sinal que ela chegou até aqui e não assinou a ficha na prefeitura...

— Pode cê...

— Tem um documento dela, então!

— Sim sinhora.

— Sim, senhorita...

— Discurpa — jogando delicadamente a carteira de identidade de sua filha em cima da mesa.

— Bianca Ozório da Conceição...

— Mais é mais cunhicida por Patativa.

— Mais conhecida por Patativa.

— Pode cê...

— Achou isto na lanchonete da rodoviária?

— “Isto” — frisou —, é um dicumento, sinhorita, a identidade de minha fia! E eu num achei. A moça da lanchonete incontrô no chão perto adonde minha fia tava sentada no barcão e guardô perto da gaveta do dinhero, e eu vi quando lá istive, mode tomá um refrescante. Ela me intregô e dice qui minha fia teve lá na noite anteriô do festivar.

— É a identidade de sua filha e a garçonete encontrou perto onde sua filha estava junto ao balcão e guardou perto do caixa e o senhor viu quando foi tomar um refrigerante lá. Certo?

— Pode cê...

— Onde o senhor mora?

— Trabaio numa fazenda no município vizinho, Fazenda Ponte Funda.

— Trabalha...

— Vai arresolvê meu problema... ou vai ficá ai fazendo hora cum minha cara!

— Eu sou uma policial. Exijo mais respeito!

— Eu tamém! Pode chamá o delegado?

— Tudo bem! Entre na segunda porta à sua direita. Sabe o que é lado direito?

— Acho que é o lado das pessoa de bem e que respeita todo mundo, seja rico ou pobre. Gradicido.

Novamente todos os detalhes foram repetidos. O delegado acompanhou-o até a escrivã.

— Peça alguém para olhar isso. Mande um detetive até a lanchonete colher mais detalhes.

— Sim senhor — respondeu a policial. — Se quiser doutor, eu mesmo dou um pulinho lá... Esta muito tranquilo aqui hoje.

— Faça isso, então. De preferência, peça para a funcionária vir até aqui ou a traga consigo.

— Já estou indo...

— O senhor pode aguardar aqui, senhor Ozório. Pode sentar ali. Esteja à vontade.

— Gradicido, dotôr. Posso fumar um cigarrinho de paia lá fora?

— Claro.

O capataz preparou seu cigarro de palha. Picou o fumo, preparou a palha e saboreou o cigarro suavemente. Em sua mente, a imagem de sua filha, cantando na roda de violeiro na fazenda. Depois, sentou-se numa cadeira no corredor da delegacia, puxou seu chapéu, cobrindo os olhos e esperou recostado na cadeira. Sua mente fervia. Onde estaria sua Patativa?

Olhou por debaixo da aba do chapéu. Percebeu que pessoas entravam pela delegacia.

— Senhor Ozório — disse o delegado —, venha à minha sala, por favor!

Ao entrar pela sala, a garçonete estava assentada numa cadeira junto à mesa do delegado, a escrivã de pé. O delegado acenou com a mão para que o vaqueiro se acomodasse.

— Conhece este homem, senhorita?

— Não. Nunca o vi na minha vida! — respondeu a garçonete, sem olhar para o vaqueiro. O vaqueiro permaneceu calado.

— Ele nos disse que a senhorita entregou a ele uma carteira de identidade da filha dele, que foi encontrada na lanchonete que você trabalha.

— Não! Eu não sei de nada disso, doutor.

— Então, nega conhecer este homem, nega ter guardado o documento e entregue a ele?

— Sim, senhor! Ele pode ter achado isso em qualquer lugar...

— Num foi o que a sinhorita dice quando me entregô a carteira da minha fia. Ta mentindo pro dotôr da lei — retrucou o vaqueiro.

— Eu nunca vi o senhor! Não sei por que estou aqui e nem por que esta me colocando nessa história. Eu nunca vi o senhor! — negou, veementemente, a garçonete.

— Tá mintindo, moça — disse com toda seriedade o vaqueiro.

— Bem, senhor Ozório, não há nenhuma prova do que o senhor disse, infelizmente. Podemos procurar por sua filha, mas a história que me contou, não tem fundamento.

— Dotôr, essa moça tá mintindo! Ela me entregô a carteira, pidiu inté que eu mostrasse meus documentos pra ela, mode ela ver se eu era o pai da moça da carteira, e dice pra eu pricurá a prefeitura e a delegacia.

— Ela nega tudo. Diz que nunca viu o senhor na vida — frisou o delegado.

— Bão, dotôr, já qui a coisa funciona deferente na cidade, eu vô pricurá minha fia, e se argúem tivé colocado um dedo nela, vai se arrependê pro resto da vida — e se levantou.

— Cuidado com o que esta dizendo, senhor Ozório. A lei existe para ser respeitada. O senhor pode ser preso se fizer alguma bobagem por aí. Deixe que a polícia investigue o caso.

— Já tão cumeçano cum mentira, dotôr. Cumigo, mentiroso num tem veiz!

— Se o senhor fizer alguma coisa errada, eu vou prendê-lo! — disse o delegado. — Eu não posso prender ninguém sem provas! Não posso sair por aí prendendo pessoas a Deus dará! Não há provas do que o senhor disse.

— Antonce, sem prova, ninguém vai pra cadeia? — e riu levemente — Descurpa, seu dotôr, esses cinco sordado qui tem na cidade e seus detetives, qui deve cê uns dois, num é páro pra mim! Pode ajuntá eis tudo que eu dô conta do recado. Passá bem!

— Venha cá! Eu não o dispensei ainda! — gritou o delegado, vendo-o sair calmamente da delegacia.

O delegado chegou até a janela. Gritou para um policial detê-lo. Mal o policial levou a mão na cintura em busca de sua arma para intimidá-lo, recebeu um forte chute na barriga, o policial curvou-se de dor e uma faca brilhou junto ao seu pescoço. O vaqueiro lhe tomou a arma e a jogou longe.

— Carma, rapaiz, num é anssim qui se lida cum homi direito, não. Eu vô saí, e se ocês vié atrás de mim, vão tê qui me matá! — e com uma das mãos, levantou o magro e jovem policial pela barriga e o segurou pelos ares, jogando-o sobre umas plantas do jardim da delegacia. Montou em seu cavalo e saiu.

...

Lucas Durand
Enviado por Lucas Durand em 23/03/2010
Reeditado em 04/04/2010
Código do texto: T2154022
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