O brasileiro que não gostava de futebol

Em ano de copa do mundo muitos caminhos se cruzam e muitos destinos se transformam. Essa foi uma das grandes lições que o ex-pastor Tomás Evangelista aprendeu no último dia de junho de 2002, na cidade de Yokohama.

Pastor de uma igreja da periferia de São Paulo, Tomás fora inexplicavelmente convidado a uma reunião de urgência na matriz de sua igreja. Era ainda mês de janeiro quando recebeu o convite do bispo Soares.

Nesta reunião, foi convidado a substituir o pastor da igreja que atendia a comunidade brasileira da cidade de Yokohama, no Japão. A proposta era boa, conheceria outro país, teria todas suas despesas pagas e ainda por cima, receberia um salário mensal em dólar. Aceitou o convite sem titubear.

No dia 23 de março de 2002, após vender seus poucos bens, despediu-se de sua mãe com um beijo carinhoso e partiu para a terra do sol nascente. Quase nada sabia sobre o Japão e, o pouco que sabia, estava errado.

Sua adaptação não foi nada fácil, apesar de atender exclusivamente a colônia brasileira. Ficava praticamente o dia inteiro na igreja dedicando-se aos fiéis, aos estudos religiosos e à Deus.

Em meados de maio, ao conversar com um fiel, soube que aquele era um ano de copa do mundo. Pior ainda, soube que Yokohama era uma das cidades-sede daquela copa. Tomás tinha um ódio profundo por futebol, não acompanhava jogos ou noticiário, não torcia para time algum e sempre desejava que o Brasil perdesse logo seus jogos para que as pessoas voltassem ao normal. Achava que elas ficavam endemoninhadas em época de copa do mundo. Odiava aquele frisson, aquela febre de copa, aquele vício tolo.

Exatamente no dia 31 de maio, a copa do mundo teve início. Tomás não escondia seu descontentamento e mau humor durante os cultos. Diariamente fazia sermões anatematizando a competição e pregando que futebol era obra do Capeta. Após os cultos, em seus aposentos, orava à Deus pedindo que Ele enviasse seus anjos para inundar a cidade, causar terremotos e destruir toda essa obra de idolatria mundana tal qual fizera com Sodoma e Gomorra, mas Deus jamais lhe dera atenção. Muito pelo contrário, a cada dia, sua igreja ficava mais vazia e, dali para diante a tendência era piorar, pois soubera que o Brasil já atingira as oitavas de finais.

Durante as semi-finais, Tomás fez um culto para apenas quatro senhoras e um cachorro vadio, que havia conseguido entrar na igreja aproveitando a ausência dos seguranças e obreiras, que assistiam o jogo. Naquele dia, Tomás decidiu abandonar a Deus e a igreja. Simplesmente arrumou suas malas e partiu para o aeroporto no intuito de voltar ao Brasil. Prometera a si mesmo que jamais pregaria àquele Deus que não honrava seu nome e suas promessas.

Mas naquele mesmo dia 26 de junho, Tomás nem imaginava que seu destino iria mudar completamente. Enquanto aguardava pelo embarque em sua aeronave, viu na TV que o Brasil havia ganho seu jogo e que enfrentaria a Alemanha na grande final. Para distrair sua atenção daquela febre maldita, puxou um livro de contos que trazia em sua bagagem de mão. Olhou o sumário e se interessou por um conto cujo o título era “O santo que não acreditava em Deus”, de João Ubaldo Ribeiro. Ao abrir o livro na página do conto, percebeu que surgira algo que não estava ali antes. Retirou aquele objeto de dentro do livro e mirava-o ainda incrédulo, tentando buscar alguma explicação lógica de como aquele ingresso para a final da copa do mundo havia parado no meio de seu livro. Pensou em milhares de alternativas, mas nenhuma fazia sentido, estivera com o livro em sua bagagem de mão o tempo todo. Voltou a analisar a página do livro onde o ingresso havia aparecido e percebeu que, além do ingresso, havia também um bilhete para ele que dizia em bom português:

“Tomás, encontre-me no estádio do Yokohama, na grande final entre Brasil e Alemanha.

Um abraço,

Emanuel

Tomás ficara intrigado em saber quem era esse Emanuel. Não se lembrava de nenhum fiel com este nome e nem imaginava como ele iria encontrá-lo no estádio de Yokohama, na final da copa do mundo sem sequer conhecê-lo. Parecia algo impossível. Mas a situação era tão estranha e deixou Tomás tão curioso que ele decidiu adiar sua volta ao Brasil e ir ao estádio encontrar-se com esse tal Emanuel.

O dia 30 de junho finalmente havia chegado, Tomás estava ansioso para resolver logo o mistério e descobrir quem era e o que Emanuel queria com ele. Acabara de passar pela catraca e logo buscou um ajudante para auxiliá-lo a encontrar seu assento numerado.

Ao chegar em seu assento, Tomás olhou ao redor e não conseguiu reconhecer ninguém. Nenhum amigo ou fiel da igreja, nada. Do seu lado esquerdo, um homem de meia idade, olhos cor de mel e cabelos grisalhos bem aparados logo lhe chamou atenção. Não o conhecia, mas lhe parecia familiar. Um homem simpático, daqueles com quem logo uma pessoa se sente à vontade e puxa uma conversa. Ao perceber que Tomás o mirava, o homem se voltou para ele e cumprimentou-o:

- Boa tarde!

Tomás respondeu educadamente, mas não falou mais nada com ele pois, apesar da empatia inicial, notou que ele vestia uma camiseta da seleção brasileira e uma calça de agasalho azul, também com o distintivo da seleção. “Este aí veio à caráter para o seu ritual de idolatria” – fulminou o homem em seu pensamento.

Tão logo este pensamento percorrera sua mente, observou que o homem se voltou para ele sorrindo e disse:

- Oras Tomás, deixe de tolices. Idolatria que nada!

Tomás se assustou com aquela reação e, desconcertado, lhe perguntou o que ele havia dito.

- Isso mesmo que você ouviu, o futebol é paixão no seu estado mais puro. Não tem nada de idolatria, não consegue ver?

Tomás pensou estar diante de algum fiel que ele não reconheceu.

- Me desculpe senhor, mas nós nos conhecemos? - perguntou Tomás.

O homem afirmou com a cabeça e disse:

- Eu certamente te conheço, mas você, apesar de todo este tempo frente à igreja, não conseguiu me reconhecer. Muito prazer, me chamam de Emanuel - disse o homem estendendo a mão direita para Tomás.

- Ora, ora, ora – disse Tomás ironicamente - finalmente o meu benfeitor. Ao que devo a honra de ter me pago a entrada para esta imundície, Sr. Emanuel? Diga-me, de onde o senhor me conhece?

- Eu te conheço desde antes de você nascer. De fato, até hoje me pergunto se não foi um erro ter mandado você pra cá – respondeu Emanuel em tom amigável.

Tomás ficou trêmulo, imaginou estar diante de algum dirigente da igreja que, a essa altura, já descobrira que ele a havia abandonado.

- O senhor é algum dirigente da igreja? – perguntou Tomás – Se for, saiba que eu a abandonei, mas vou devolver tod...

Emanuel interrompeu as palavras de Tomás balançando negativamente a cabeça e dizendo:

- Não é nada disso Tomás. Eu não sou membro de igreja nenhuma. Aliás, isso é coisa de vocês, humanos, que vivem interpretando mal meus desejos.

Tomás fez uma cara de quem estava começando a entender aquela conversa.

- O senhor, por acaso, está querendo me dizer que é Deus? – perguntou Tomás desafiadoramente.

- Já que você disse, sim, eu sou aquele que é, o alfa e o ômega – respondeu Emanuel.

- Blasfêmia, blasfêmia – gritou Tomás, você é um louco varrido, homem. Eu vou é embora daqui, não tenho tempo pra essas loucuras.

Quando Tomás tentou levantar-se de sua cadeira, notou que não conseguia se mexer no assento.

- Escute aqui, Tomás – iniciou Deus em um tom paciente - não vim aqui pra discutir com você. Vim pra te fazer uma proposta porque tu és meu escolhido desde que estavas no ventre de tua mãe.

Tomás não acreditava no que estava acontecendo com ele. Tudo parecia um sonho louco. Ele ali, discutindo com Deus, que vestia o uniforme da seleção brasileira e prestes a assistirem à final da copa do mundo do Japão.

- O negócio é o seguinte Tomás, neste último mês você foi muito duro em suas orações, pedindo para que eu acabasse com o futebol que é uma das poucas alegrias do povo. Porquê fazes toda essa perseguição ao futebol rapaz?

Tomás ia começando a responder com sua velha lenga-lenga sobre idolatria e sedição quando Deus o interrompeu dizendo:

- Ao trazê-lo para o Japão, imaginei que você se apaixonaria pelo clima do futebol livremente, apenas por presenciar toda a magia de uma copa, mas não deu certo. Como todo homem, você é teimoso e pouco humilde. Se fechou dentro de si e pior, botou a culpa em mim. Quis fugir justamente de mim, que tudo sei – disse Deus em tom de reprovação.

- Como esses não são tempos de milagres e preciso de você, não quis fazer ressoar minha voz dos céus, derrubá-lo de um cavalo e deixá-lo cego, como fiz com Paulo. Além do mais, esta era uma boa oportunidade para eu vir à Terra rever este jogaço que, já sei, será ótimo.

- Mas se você já sabe, porque vai ver novamente? Perguntou Tomás.

- Pela beleza do futebol, Tomás – dizia Deus fechando os olhos - é como ver os replays dos jogos de 70: você sabe que o Pelé vai rolar a bola pro Carlos Alberto na direita, a bola vai dar aquela quicada providencial, graças à mim, e ele vai acertar aquele chute indefensável. Jamais me canso de rever estas cenas – dizia isso dando uma piscadela para Tomás.

- Mas voltando ao que interessa, eu tenho planos para você, meu filho. É meu desejo que você seja meu apóstolo e passe de perseguidor a embaixador do futebol. Promoverás ainda mais este esporte em todos os lugares do mundo, especialmente nos lugares mais pobres, no seio das comunidades mais humildes. É ali que você vai trabalhar e onde eu vou operar meus milagres. Mas não vá me criar uma nova religião, hein? Paulo me entendeu mal e você viu no que deu!

- Mas Senhor, eu sempre achei que isso era coisa de Satanás. Persegui ferozmente o futebol, sobretudo, neste último mês. Como é que posso voltar atrás agora e defender o futebol? As pessoas não acreditarão em mim.

- Vá e faça o que estou mandando - respondeu Deus – basta ser humilde e reconhecer para si mesmo que tu estavas errado, o resto se ajeita. Poucos se lembrarão que um dia fostes contrário ao futebol.

- Tudo bem, Senhor, mas nem sei por onde começar. O que queres que eu faça agora?

- Agora? – perguntava Deus se ajeitando em seu assento. - Agora vamos assistir a este jogo. Sente-se e desfrute dessa belíssima final de copa do mundo.

Providencialmente, assim que Deus acabara de falar, o juiz trilou seu apito e o jogo iniciou. Exatamente em um momento em que o Brasil atacava, Tomás chamou pelo Senhor para lhe fazer uma pergunta, o que o deixou um pouco irritado.

- Mas senhor, agora fiquei com uma dúvida tremenda – ia dizendo Tomás com uma cara de interrogação. - já entendi que futebol não é coisa de Satanás, mas se você gosta tanto de futebol e está aqui, onde está o tinhoso?

- Lúcifer? – respondeu Deus sorrindo – é este aí, sentado na fileira da frente. Ficou magoado comigo, dizendo que eu o trapaceei eliminando o time dele ainda na primeira fase da competição – dizia Deus ainda com um sorriso maroto nos lábios - Agora fica aí, com suas tramas e feitiçarias para prejudicar o Brasil.

Lúcifer, um homem alto, cabelo à altura dos ombros e nariz adunco, ao perceber que falavam de si na fileira de cima, virou-se para trás e, olhando profundamente nos olhos de Tomás, disse:

- Hola, que tal? – cumprimentou a Tomás cordialmente.

Tomás se encolheu todo de medo e não respondeu ao cumprimento de Lúcifer. Dali de onde estava, apenas percebeu que o Diabo voltara sua atenção para Deus e gritava para ele:

- Esto no va quedarse así, Emanuel. Seguro que vuelvo en la proxima copa. Aguardame! Aguardame!

Naquele exato instante, Ronaldo fazia o primeiro gol do jogo, levando todo estádio abaixo. Até o próprio Deus comemorou o gol pulando e gritando, como se fora outro torcedor qualquer.

Ao terminar sua comemoração, chamou Tomás de lado e cochichou a ele:

- Lúcifer está magoado comigo porque infelizmente – dizia Ele em tom irônico – tive que punir os Argentinos pelo pecado da soberba. Este ano eles chegaram ao Japão como se já fossem os campeões – prosseguia Deus em tom de indignação – onde já se viu? – prosseguia ele – mas acho que para a próxima copa, eles virão mais tranqüilos.

Naquele exato momento, Ronaldo acabara de marcar o segundo e definitivo gol do Brasil. Deus aplaudia bastante e Tomás, admirando a situação, viu que em Sua camiseta foi surgindo uma nova estrela bordada no meio das outras quatro. Foi só então que, antes do próprio jogo terminar, Tomás soube que tudo já estava consumado. O Brasil seria pentacampeão mundial e o seu destino, doravante, havia se alterado para todo o sempre.

Ano de copa do mundo é assim mesmo, concluiu Tomás, muitos caminhos se cruzam e muitos outros destinos se transformam permanentemente.

* Escrito em Setembro/2002, poucos dias após a vitória do Brasil contra a Alemanha.

Roger Beier
Enviado por Roger Beier em 13/08/2006
Código do texto: T215755